Parashá SHEMINI - Comentários



No seu livro sobre as leis dietéticas judaicas, o rabino Samuel H. Dresner cita Cleachus, um discípulo de Aristóteles, que relata que seu mestre, após conversar com um judeu, ficou muito impressionado com duas coisas relativas aos judeus: sua filosofia admirável e sua dieta rigorosa.

Hoje, 2.500 anos depois de Aristóteles, quem nao conhece a dieta judaica, conhecida como comida kosher? Não encontro dificuldade alguma em conseguir de uma empresa aérea chinesa que me sirva comida kosher, num vôo de Pequim a Tóquio. Atualmente, a palavra "kosher"consta de qualquer dicionário de língua inglesa. E, no entanto, sabemos tão pouco a respeito do kashrut. Por que certos alimentos são permitidos e outros não? O que faz com que determinados animais domésticos e aves sejam considerados "puros" ou kosher, ou "impuros"ou traif"?

Provavelmente, nenhum outro tópico da Torá tem dado margem a tantas explicações e justificações teóricas como as restrições dietéticas. Desde Philo * , na Alexandria do século I, até antropólogos e apologéticos religiosos contemporâneos, encontramos sempre novas teorias que procuram um significado para a long lista de alimentos permitidos e proibidos, que ocupa tanto espaço na Torá e tem sido de vital importância para a vida judaica no decorrer dos séculos.

Primeiramente, vem os insetos, peixes, aves e animais que são proibidos. As leis dietéticas determinam, também, a maneira correta de abater o animal e drenar seu sangue. Outra exigência é a de que carte e laticínios não sejam consumidos ou cozidos juntos. A Torá não apresenta razões para as restrições, exceto no que se refere ao sangue: "Porque a vida de um corpo está no sangue"(Lev. 17:11-12) **. Como ocorre com as demais leis dietéticas, há um propósito global: "...Pois Eu souo o Senhor que vos fiz sair da terra do Egito para ser o vosso Deus: sereis santos, porque eu sou santo" (Lev.11:44-47).

Do acima exposto, como, também, a partir de outros textos em que a Torá fala-nos dos vários aspectos do kashrut (verja Êxodo 22:30, Deut. 14:21), fica evidente que o propósito deste sistema de leis dietéticas é a santidade. Isto põe por terra o argumento defendido por muitos judeus de hoje de que "o kashrut pode ter sido necessário nos tempos antigos, mas com os métodos modernos de abate, a inspeção governamental regular e o preparo higiênico dos alimentos, ele é um anacronismo que deve ser descartado junto com o cavalo e a carruagem".

A idéia de Maimônides de que o motivo básico do kashrut é o de preservar a saúde foi rejeitada centenas de anos atrás. Entre outros, o rabino Isaac Arma (1420-94) em seu Akedat Yizhak contrapõe- ao ponto de vista de Maimônides, afirmando o seguinte: "As leis dietéticas não são, como muitos querem dar a entender, motivadas por considerações terapêuticas. Deus nos livre! Se fosse assim, a Torá seria reduzida à condiçào de um tratamento médico ou menos do que isto".

O conceito de que "a alimentação molda o caráter" ou "o homem é o que come (o que entra pela bôca)" remonta a Philo, que escreveu há 2.000 anos que a prescrição de comida kosher tem como objetivo plasmar nossa personalidade. A intenção das leis dietéticas, explica ele, é a de nos ensinar a controlar nossos apetites corporais. Embora Moisés não tenha exigido de nós um espírito de renúncia espartano, ele proibiu o consumo de carne de porco, a mais deliciosa de todas as carnes, a fim de desencorajar a excessiva satisfação de nossos desejos. Ele proibiu, além disso, o consumo de determinados animais e aves carnívoros a fim de nos ensinar delicadeza e bondade. Philo acha um significado simbólico na permissão de comer ruminantes de cascos fendidos: a sabedoria humana cresce apenas se o homem fica ruminando o que estudo e se aprente a distinguir os vários conceitos ( Philo, The Special Laws IV, 97f).

Uma das explicações pragmáticas para as leis dietéticas é que elas foram ordenadas com o fim de separar os judeus do ambiente gentio. Se foi este o propósito ou não, fenomenológicamente, as leis do kashrut realmente são um fator social poderoso para a sobrevivência judaica e uma proteção contra a assimilação. Até hoje, são leis que fazem os judeus se reunirem, sejam em casa ou quando estão viajando. Restaurantes kosher em toda a parte são um lugar onde judeus procuram conviver e encontrar calor nete enorme e estranho mundo.

Outra corrente de interpretação é a simbólica. Vem desde Philo e alcança os tempos atuais. Vozes importantes desta escola de pensamento, além dos apologéticos orotodoxos (como S.R. Hirsch, Dayan Grunfeld e outros) são a antropóloca inglesa Mary Douglas e o estruturalista frances Jean Soler. A percepção subjacente compartilhada por estes dois é que as proibições dietéticas são uma espécie de linguagem simbólica destinada a transmitir um sendo de realidade, refletindo o conceito de santidade de Deus que Israel tem de compartilhar.

A predominante exposição de motivos que emerge dos vários enfoques sobre o significado das leis dietéticas é que a Torá legisla para despertar em nós o respeito pela vida. Para alguns, esta é a lição moral básica do kashrut. Dennis Prager e Joseph Telushkin, no seu popular livro Nine Questions People Ask About Judaism dão um passo à frente, ao dizer que "a dieta kosher é a concessão do judaísmo a partir do seu ideal de obter alimento sem matar, a saber, o vegetarianismo".

De acordo com a Torá o ideal seria que os seres humanos comesses apenas frutas, legumes e verduras e não matassem para se alimentar. No Jardim do Eden, foi ordenado originalmente ao homem que fosse vegetariano (Genesis 1:28-29). A futura utopia escatológica é, também, descrita como uma condição em que todas as criaturas serão vegetarianas (Isaias 11:7 segs.). A Torá refere-se de um modo negativo a consumo de carne, considerando-o como um "desejo" incontrolável. Percebendo que seria dificil, se não impossível, controlar o "desejo" do homem por carne, a Torá não ordena o vegetarianismo absoluto, que seria o ideial, ao invés disto prescreve o kashrut.

Assim, as leis dietéticas destinam-se a nos ensinar que um judeu deve, de preferência, ser vegetariano. Se, contudo, não puder controlar seus desejo por carne, que esta seja kosher. Isto o lembrará que o animal que lhe serve de refeição é uma criatura de Deus, que a morte desta criatura não pode ser considerada levianamente, que a caça como esporte é proibida, que não podemos tratar nenhum ser vivo desumanamente e que somos responsáveis pelo que acontece a outros seres (humanos ou animais) mesmo se pessoalmente não tivemos contato com eles.

Como exemplo destas últimas considerações, citamos o fato de uma corte rabínica de Boston, anos atrás, ter considerado não-kosher uvas apanhadas por trabalhadors chicanos (americanos de origem mexicana) oprimidos. Isto sugere que, talvez, possa ser vetado o uso, sob a base de não-kosher, de pelos de filhotes de foca, mortos a pauldas (etc...***).

Kosher não significa "puro", nem "santo" ou "abençoado" por um rabino; kosher significa "apropriado". O objetivo das leis de kashrut é ajudar a escolher diretrizes que nos indiquem a forma apropriada de proceder na atividade humana básica que é a alimentação e em relação ao tratamento que damos aos serem vivos em geral.

(1) por R.P.P. Hacohen, in Torah Today (J.Post)

* Grande, senão o maior, pensador judeu em língua grega. Viveu em Alexandria no século I e teve papel determinante na defesa de Jerusalém, antes da destruição.

** a Torá também se refere a não cozinhar o filhote no leite da mãe (da matriz);

*** casos de produtos que tiveram origem em crimes ecológicos, na exploração de menores ou trabalho escravo, entre os muitos que podem ser citados.


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