BABEL: DE VOLTA À CONFUSÃO

Rabino Nilton Bonder


 

 

As guerras são sempre míticas. Nelas se revelam aspectos do imaginário humano que manifestam forças profundas da natureza e da vida.

O conflito no Iraque, entre tantos significados políticos e culturais, possui um elemento que o torna quase místico. É de lá que vem a história da Torre de Babel bíblica, inspirada em questões civilizacionais da antiga Mesopotâmia.

O relato do Gênesis tenta retratar a angústia de uma civilização diante das mutações externas e internas que caracterizam a própria vida. Claramente, uma polêmica entre o processo de urbanização promovido pelo advento da monocultura agrícola e a velha ordem de pastores e de agricultura de subsistência, contrastava a Babilônia e seus jardins suspensos com uma antiga ordem que questionava a ética do progresso baseado na matéria.

Tratava-se de um mundo globalizado — todos falavam, aparentemente, a mesma língua. O que motivava a construção da Torre era o advento do tijolo. Uma estrutura feita como o próprio ser humano — de terra.

O tijolo, no entanto, é a matéria sem o sopro divino. Provavelmente escutamos ecos fundamentalistas que se opunham não tanto ao progresso, mas que legitimamente questionavam a qualidade desses avanços.

A preocupação e a intimidação celeste se dá por conta da estrutura dessa Torre acimentada pela ambição e pelo desejo humano por controle. “Vamos, façamos para nós um nome” — é a proposta política da Torre do Iraque, epicentro das atribulações da alma de então.

Fazer um “nome” é a proposta de uma conquista externa em contraposição ao desenvolvimento interno. Espiritualmente, seria a polêmica de chegar aos céus pela ciência, pelos Columbias e DNAs, versus chegar-se aos céus pelo encontro da paz em si mesmo.

Há, porém, um jogo de palavras por trás do relato mítico da Torre. Babel é a raiz da palavra “confundir”, ou “embananar” em hebraico. A Torre da Babilônia seria, portanto, a Torre da confusão. Daí a idéia de atribuir-lhe a etiologia dos distintos idiomas.

Os céus resolveram confundir os humanos fazendo com que falassem línguas distintas, cada um a de sua tribo. Era o fim da globalização, inicio de uma humanidade tribalizada, irreversivelmente separada por confusões internas, mais do que por distinções reais. A matéria, os tijolos, havia repartido as nações e elas não mais se entendiam. O projeto de progresso se tornou comprometido por conta de limitações internas.

Sem cair na armadilha de querer fazer caber paralelismos como se de encomenda, é impressionante a semelhança com os nossos tempos. Talvez porque não se trate de um paralelismo, mas a manifestação do mesmo sintoma — as nações reunidas em Nova York com uma proposta de um mundo globalizado, dispondo de condições científicas para a reengenharia da vida, sucumbem à realidade das muitas línguas. Não se entendem e voltam a ser um bando de tribos. No centro está o tijolo da Babilônia, a matéria que hoje assume a forma de óleo. Óleo que é orgânico, a matéria do que já foi vivo, tal como o tijolo era a terra, o humus orgânico bíblico. Podemos então entender o que, na verdade, criou os múltiplos idiomas. As línguas falam a mesma coisa, mas um não compreende o outro. Sua motivação, seus verbos e adjetivos são os mesmos. Seus sujeitos, aparentemente, distintos.

“Eu” versus “nós” produziu a diversidade de línguas, apesar delas todas dizerem a mesma coisa. Os idiomas são o símbolo da dissimulação humana, um segundo momento onde Adão, confrontado pelo Criador, se oculta. Escondido de sua própria vergonha, tenta dissimular que está nu.

As guerras nos deixam nus. Elas não revelam vilões e mocinhos, mas humanos. Americanos, iraquianos, franceses, sem terra, terroristas, pacifistas, falcões e tantas outras caracterizações escondem uma mesma língua cheia de sujeitos distintos.

Nosso mundo, em pleno século XXI, ainda é regido pelo desejo de “construirmos um nome”. Jamais seremos globalizados em busca de um “nome” ou da definição de sujeitos que afirmam sua identidade por exclusão. “Nós não somos como eles” — é o que dizem todas as línguas quando traduzidas para um esperanto cósmico. Mas são iguaizinhos. Não há superioridade moral em nenhum grupamento humano, são seus idiomas que lhes rendem esta impressão.

E todo aquele que queimar bandeira e todo aquele que não se curvar à vergonha de nossa nudez é responsável pela dispersão humana, pelo exílio infindável de nossa condição humana. Um Adão no qual grita mais forte a terra, o tijolo, do que o sopro.

Na miséria da guerra há sempre a oportunidade de nos reconhecermos no choro e na dor. Se não nos reconhecemos em nossos sonhos e prazeres como iguais, filhos de Adão, globalizados como outrora, que nos reconheçamos nas lágrimas e sofrimentos como iguais, filhos de Abraão, na miséria de todas as nossas tribos.

A Babel de hoje, no limiar de uma agricultura transgênica, de uma humanidade transgênica, é símbolo de nossa confusão civilizacional. Materialismo e fundamentalismo estão esvaziando de tal maneira o projeto da vida que se abre uma janela de oportunidade. A busca da paz não se dá na mesa, nelas há o arremedo da confusão. A paz se dá no coração, num encontro com os céus desde dentro, sem buscar “nomes”, porque o Nome é um.

O Globo - Opinião - 1º de abril de 2003

 

 
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