QUANTO LHE DÓI?


 

 

Nossa tradição diz que em Shavuot recebemos a Torá e que 40 dias depois, ao descer, Moisés quebrou as Tabuas no dia 17 de Tamuz. Tudo parecia tão sem esperança até que no primeiro dia de Elul, Moisés retorna por mais 40 dias, para trazer novas Tabuas da Lei.

A essência deste dia tem a ver com uma nova chance. E quão mais profunda é uma segunda chance. A segunda edição da Torá era muito mais especial pois já trazia em si a marca da vida - dos erros em busca de acertos. Trazia a marca do perdão que nada mais é do que um carinho revestido de advertência e responsabilidade.

A segunda subida de Moisés para receber a Torá não é mais tão longa pois a distância entre o céu e a terra havia diminuído. Com o perdão há um noivado. Há um compromisso que quer aprofundar relações. Por isto talvez digam os sábios que as letras do mes de Elul são as iniciais da frase ani le-dodi ve-dodi li (eu sou para meu noivo e ele é para mim) no Cântico dos Cânticos.

O processo de perdoar é algo distinto de tudo que experimentamos. Há um movimento de confiança e de aprofundar das relações que é temível e amoroso. Como uma atração forte nos faz temer e nos embevece ao mesmo tempo. Quantas vezes na festinha o menino cruza olhares buscando convidar para uma dança… mas o temor é absurdo na proporção da ternura sentida. Estes são os Dias Temíveis - dias de reconhecer no Criador o desejo de estar mais próximo de nós e o quanto nos é difícil dar o primeiro passo. Convidá-Lo(a) a dançar exige coragem.

Na verdade, o processo de Tshuvá (retorno) - de flertar com a vida e dar passos no sentido de dançar com ela - é um breve momento. Entre o adolescente que sai frustrado sonhando com a dança não dançada, sofrendo por ter deixado escapar o que poderia ser mágico e o que sai nas nuvens por ter se permitido, se entregado, ao movimento de sim pedir para dançar há uma distância de uma Tshuvá. Mesmo a negativa ao convite é muito mais próxima da satisfação do que da frustração de não tê-lo feito. É este momento de querer dançar mais do que nada, de se entregar é que é a Tshuvá. É este ato que instaura saúde e alegria.

Perguntou o Rebbe de Kotzk certa vez a seus discípulos: "Qual é a distância entre o Ocidente e o Oriente?" Ao silêncio dos mesmos o Kotzker rebbe concluiu: "um simples dar-se volta!".

Tshuva não é o acerto concluído, mas o simples dar-se volta - shuva - e você terá deixado o Ocidente e se encaminha para o Oriente. A orientação é tudo que importa… não interessa aonde você está, em que fase do caminho.

Este momento de tomar a iniciativa da dança, este dar volta é identificado melhor pela pergunta - o quanto te dói?. Tshuva, o dar-se volta depende deste sentimento. Quando fazemos algo de errado a pergunta não é se você se dá conta que errou mas se
acaso te dói que você magoou? É esta a pergunta do chassid quando lhe dizem "eu te amo"… "acaso você sente a minha dor", ao ouvir uma resposta negativa ele conclui: "então você não me ama!"

Saber amar é saber o quanto dói. Seja amar a si ou a um outro. E qual a natureza desta dor? Quando fazemos algo mesmo que sem querer… quando queremos respeitar um shabat e acabamos fazendo algo impróprio? Quanto te dói. Se você come algo e descobre depois que era feito de alguma substância imprópria… Tudo bem, você não sabia… mas quanto te dói. Ou o aniversário que você esqueceu… ou o jantar que você mais uma vez perdeu… quanto te dói? Ou a chance de descanso que escapou… ou a falta de coragem de ter negado… ou a repetição de um padrão de reação… ou o medo que ressurgiu… quanto te dói? Ou a possibilidade perdida de ter ajudado… ou a indiferença já expressada… a festa não ida… a viagem não feita… a experiência não vivida… quanto te dói?

Sentir a dor por si ou por outros é estar conectado a vida. Mas porque nos tornamos então insensíveis à dor? Porque a própria natureza da dor é que "dói". Dar a volta é simples como é complicado. Pois a dor é uma manifestação de reconhecimento de desconforto. E é claro, preferimos não ter este reconhecimento.

Dar a volta implica em mudar direções. Implica em perceber leituras erradas da vida e preferimos os analgésicos. Aprendemos a medicar os sintomas e nos sentimos novamente sem dor. Achamos assim que poderemos dar voltas sem desconforto. Preferimos o desconforto não sentido e queremos negar-lhe a condição de ser uma realidade. Optamos por fugir.

A verdade é que ninguém gosta de sentir dor. Mesmo o nosso sistema nervoso produz endorfina para tentar neutralizar a dor desnecessária. Mas quem mais se fere com a dor é nosso ego, nossas ilusões.

A dor acumulada se transforma em algo insuportável e rompe-se com a possibilidade de se sentir dor. Mas o Baal Shem Tov alertava: em nosso julgamento final vão mostrar-nos dois enredos - um de nossa vida real e outro da pessoa que podemos ser - se os dois se superpõe perfeitamente, esta é a experiência do céu. Caso contrário, esta constituido um inferno.

Dizia o Rabino Wolf de Zlotchev:

Tenho um único temor diante do Tribunal Celeste. Se me perguntarem "Porque não aprendeste tudo que poderias ter aprendido?" e poderei responder "porque não fui dotado de grande inteligência". Ou se me perguntarem "porque não ofereceu mais alegria nos serviços religiosos a teu D'us?" e responderei "porque não tinha mais força física!". Ou se perguntarem "porque não contribuiu mais com a caridade e a tsedaka?" e direi "porque também tive uma vida de privações". Por fim prevejo que um juiz furioso me fará a derradeira pergunta: "Há algo que não compreendo: não tens vivido, não tens orado e não tens estudado como deverias, e de onde vinha tanto orgulho?"

O orgulho é a pior forma de enfrentar a dor. O orgulho é um intensificador de dor. É a humildade que nos oferece um caminho onde a dor é suportável, ou melhor, parte já embutida do movimento ou da existência.

Rosh Ha-shana é o dia de reconhecer o caminho da humildade como a forma mais sadia de viver-se a vida. Toda a propaganda conclamando à fama, ao sucesso, às realizações e ao darmos importância a poder e possessão deveria vir com a advertência - o orgulho faz mal à saúde. O orgulho nos faz apavorados da possibilidade da dor.

O orgulhoso toma morfina, o humilde aprende um mecanismo de si mesmo que é, ao surgir da dor, colocar a mão sobre o local doído. No sentido fisiológico ativamos assim um sistema nervoso que permite a este estímulo chegar antes da dor. Com a produção de endorfina a dor é em muito neutralizada e se torna suportável. Colocar a mão no local doído e com isto reduzir a dor é também possível na esfera espiritual pois é como um chamado, um alerta para despertarmos o lugar de onde o desconforto emana.

A humildade é a sabedoria de não tomar às mãos o que não lhes pertence. Este é o grande efeito terapêutico do Rosh Ha-shana - lembrar-nos (Iom ha-Zikaron, dia da Recordação) de que D'us é soberano sobre a realidade (Malchuiot). Tornando-nos um pouco mais sensíveis a este fato, diminuímos a dor ao reduzirmos expectativas e ilusões.

Dá-te volta. Não tem medo da dor e tire a vida para dançar.

 

MENU SHAVUOT MENU FESTAS