MÁSCARAS E MILAGRES

Rabino Nilton Bonder


 

 

Purim é o primeiro grito de primavera no hemisfério norte.

Tal como Chanuka dá início ao inverno, Purim é a festa de seu término.

E o inverno é uma estação de grande valor simbólico para o mundo espiritual. A primavera é o mundo físico de Assiá; o verão o mundo emocional de Ietsirá; e o outono o mundo intelectual de Beriá.

Quanto mais claridade, mais concreto é o mundo em questão. A primavera rompe a escuridão do inverno e sua claridade é ofuscante para a retina acostumada com as longas noites e os curtos dias. A primavera explode em sensualidade e a virilidade da terra se manifesta na semeadura e na retirada da roupa pesada do inverno que revela o corpo físico. É época de acasalamento, é época de flores. Vem então o verão e a maturidade da claridade. Para além do físico, é tempo de fortes emoções e de paixões. É uma claridade que vem marcada por calores e por excessos.

As primeiras sombras trazem não só o outono mas com ele o mundo sutil. O escuro lentamente vai permitindo acesso ao que é oculto. Mais noite mais sonho, mais penumbra menos certeza. O outono traz a vitalidade do mundo da perda do vigor, da árvore que amarela e que perde a força da matéria. A atenção dá lugar ao torpor, o pleno aos fragmentos, o palpável à névoa. Enquanto o mundo entra em processo de contração, se instala o mundo da reflexão, do intelecto. O pensar, mais do que o florescer e o amar, assume controle do prazer e do sentido. A pouca claridade que ainda resta serve como pano de fundo para as sombras e suas dissimulações e seus secretos. Com a pouca luz ainda é possível encontrar significados que parecem tangíveis.

Retorna o inverno e o breu impera sobre a vida. Chanuka acende luzes em meio a este tempo de não se enxergar, tempo de esquecimento, tempo sem luz que aponte no final da jornada. As velas rompem o silêncio das sombras e tentam restabelecer a fé num momento onde só o espírito tem um discurso que faz sentido. A noite não é para gestos, não é para música e não é para idéias. A noite é feita para a liturgia. Na noite hiberna a memória mas, em sua forma latente, esta não se entrega totalmente ao esquecimento. Chanuka e suas velas não querem revelar pois reconhecem o império do oculto. Querem sim manter uma pequena chama, a chispa viva que submerge num mar de frio e espera.

Purim é o fim deste ciclo. Duas palavras apontam nesta festa como redentoras do destino. Por um lado está a Meguilá, o pergaminho que contém a história de Purim; por outro Esther, a rainha messiânica que resgata. Talvez o mais impressionante seja o fato de que estas duas palavras em hebraico possuem um segundo significado que expõe um jogo de máscaras a ser compreendido. "Megalé", a mesma raiz de Meguilá, quer dizer "revelado" ou "manifesto". Esther, por sua vez, possui a raiz de Isthar, cujo significado é "oculto" ou "encoberto".

Purim, o grito inicial da primavera, é o território da máscara. O grande jogo da vida é descobrir a dança contínua entre o oculto e o manifesto. O renascer das plantas revela o milagre oculto da vida que não se fazia ver mas lá estava. A própria Meguilá é o único livro de toda Bíblia que não contém uma sequer menção ao nome de D'us. D'us está, no inverno, nISTHAR. O D'us latente que hiberna na realidade de tanto em tanto, continua a produzir milagres tão impressionantes quanto aqueles que acontecem às claras. O nascimento, o amor, a maturação e a vida em fim são produtos da claridade. A morte, o esquecimento, a degradação e a finitude são também milagres produzidos pelas sombras. Milagres que insuflam de possibilidade a realidade e sem os quais não haveria espaço para ser e existir.

O grito exagerado de Purim é o som do triunfo - da integração do que não é para se entender com o que é para ser entendido. É o som da loucura - a fusão entre o que é de se esperar e do que é totalmente inesperado. Nesta noite eu vou pular até cair! Ou a versão judaica - vou ficar tão doido que não saberei distinguir o vilão Haman do herói Mordechai. Nesta noite o oculto e o manifesto, o nistar (esther) e o nig'le (meg'ila), vão brincar. Por trás da máscara só D'us sabe se está o oculto e o medo que freqüentemente nos instiga ou o manifesto que nos preenche de segurança. Dançar com esta máscara é poder viver uma alegria que não sabe mais distinguir entre a morte e a vida. Rodopiar nesta frenética dança com a realidade é abraçar ambos - herói e vilão - numa única paixão.

E qual a proteção para ter tamanha ousadia? A primavera que com luz desperta o mundo manifesto. De luz acesa, a criança de nós tem menos medo dos fantasmas do escuro. Por isto se dança esta dança no final do inverno e não no início do mesmo. Da única maneira que nos é possível tamanho atrevimento, em Purim -- ao contrário deChanuka -- celebramos a escuridão.

A festa da escuridão é repleta de alegria. Uma alegria que não dá espaço algum a qualquer outro sentimento e não nos deixa ver mais nada.

Cegos, nos é mais fácil lidar com o escuro.

Purim Sameach !


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