AS PRECES E SUA DIREÇÃO

Rabino Nilton Bonder


 

 

Às vésperas dos Dias Intensos a liturgia e as orações se tornam tema de destaque. É comum sequer paramos para refletir (não só na mente, mas refletir no coração, na pele ou no estômago) o que as orações significam para a tradição judaica. O crescendo da preparação de Elul para Rosh Ha-Shana para o Iom Kipur nos torna mais sensíveis a esta reflexão. Afinal este é o período de apreensão quanto à capacidade de nossas orações se elevarem ou não.

No entanto, muito mais importante do que o eixo vertical (da terra para os céus) é o eixo horizontal (da terra para a terra). Aliás esta é a definição da própria tradição judaica - uma tradição que só concebe a transcendência vertical uma vez que se tenha realizado a transcendência horizontal. Não é por acaso que o sábio Hilel condensa a Tora na frase "não faça ao outro o que não gostaria que fizessem a ti". Ele não reduz a Tora a cumprir os mandamentos de D`us ou a qualquer teologia vertical, mas a pura e simples questão do ser humano para com o ser humano.

Como se D`us nos dissesse: "Esqueçam-se de mim e procedam como se a santidade da vida não estivesse no plano divino ou celeste, mas aí do seu lado, no seu vizinho, no seu outro ou em si mesmo." Como se devêssemos estar mais apreensivos para que nossas orações se espalhassem do que se elevassem. Mas o que significa isto? Estaríamos tratando na "horizontalidade" de questões de moral e de culpa? Estaríamos falando de ajudar "o pobre, a viúva, o órfão e o fraco"? Não. Realizar estas categorias de ação (e todas as outras que se façam necessárias) é conseqüência de uma capacitação que se antecede à ação - a capacidade de nos fazermos mais humanos.

D`us que sabe não sermos nem tão ruins nem tão bons quanto podemos nos perceber, pode nos auxiliar na mais urgente das curas. Cura de nossa arrogância de que os outros não são tão ruins e nem nós tão bons; cura de nossa apatia, vergonha e desamor ao descobrirmos que nós mesmos não somos tão ruins e nem os outros tão bons. Saber olhar os seres humanos sem subserviência sabendo que ninguém é tão bom para ser melhor ou mais especial que os outros e ninguém tão pior para que seja humilhado ou explorado; saber se impor e contribuir sem o medo de que os outros são tão bons e nós tão ruins. Estender a mão ao outro sabendo que não há ser humano "que não tenha a sua hora" que o seu nem tão ruim e o nosso não tão bom nos aproximam incrivelmente - nos colocam juntos.

O caminho dos céus se faz pelas trilhas da terra. A nossa tradição que há milênios misturou o mistério com a ética, busca nos despertar para esta verdade tão simples e libertadora. A ascensão acontece não pela elevação mas pelo abraço, pelo olhar no olho, pela voz que se mistura, pela dança que encontra o outro. A ascensão está ao lado e não acima. Como na história do rabino que estava escrevendo um tratado sobre "tsedaka" (justiça e responsabilidade social) quando um mendigo faminto bateu a sua porta.

Bastante incomodado o rabino desferiu: Como você ousa me perturbar, não vê que estou fazendo algo muito sagrado?

O que estamos fazendo que é tão sagrado que não nos permite olhar para o lado ou para dentro de nós mesmos?

Quando o shofar soar ouça-o vindo dos quatro cantos da terra. Não espere ouvi-lo dos céus. O shofar que anunciará dias melhores em nossas vidas particulares e coletivas virá do não tão ruim e do não tão bom que é lugar do que é humano. Afinal nossos ouvidos foram dispostos para os lados e não para cima.

Quem sabe a kipa (solidéu) não seja espiritualmente talvez uma klipa (uma couraça, um bloqueio) que alerta: Se você deseja alcançar as alturas do mundo espiritual não caia na mais sedutora das armadilhas. Desligue-se do que há acima e concentre-se no que há à volta. Talvez a kipa nos santifica ao criar uma barreira ensinando que a transcendência não está no eixo vertical mas no eixo horizontal.

Le-Shana Tová Tikatevu ve-Techatemu


MENU YOM KIPUR MENU FESTAS