PERDÃO É UMA PERDA MUITO GRANDE

Benjamin Mandelbaum


 

 

As palavras tem uma vida própria, que vai muito além de sua etimologia e significado. Para nos contactarmos com esta vida precisamos abrir o coração. Êste se localiza na Árvore da Vida em Tiferet, a sefirá central da coluna da suavidade, que equilibra as colunas laterais da misericórdia com a severidade. Isto pode ser feito, baseando-se na tradição hassídica, através da artes.

Dançando e cantando com as letras, poeticamente com os nomes poderemos alcançar espaços ocultos, revelando uma beleza tiférica interior, que encerra a verdade da emanação divina presente nos números, letras e palavras vivificados.

A estrêla de Davi é a superposição de dois triângulos. Um aponta para cima e outro para baixo, significando a unidade entre o pólo superior e o inferior, mostrando que é assim na terra como no céu. Nos ensina a tradição que devemos tratar as coisas mundanas como celestiais, da mesma forma que as celestiais como mundanas.

Keter, a sefirá número 1 da Árvore da Vida , é a coroa divina tendo seu reino em Malkut, a sefirá número 10, cuja soma dos seus algarismos 1+ 0 é igual a 1, corroborando o princípio unitário do monoteísmo.

Sabemos que o hebraico tem uma origem celestial, sendo uma língua sagrada em sua essência. Mas não impede, muito pelo contrário, que possamos sacralizar outros idiomas, que longe de ser uma profanização, trata-se de reconhecer a própria presença divina, Schechiná, em todas as línguas. Na busca da transcendência mística, fazemos a ascensão caminhando da densidade máxima da materialidade malkutiana em direção à Keter, retornando a origem. Este caminho de regresso do "relâmpago flamejante", que vai do 1 ao 10, corresponde ao re-ligare cabalísta, que no plano da linguagem significa a retomada do caminho inverso da torre de babel, história do desvio humano, em seu pecado imaturo apressado de cobiçar ocupar o lugar divino. Podemos então, através da poesia, buscar a correção tikuniana, contactando com nosso coração tiférico a divinização das palavras, que mesmo criadas pelos homens, não deixa de ser uma benesse divina, já presente no atributo adâmico da nomeação.

Mais do que jogar com as palavras é permitir a autonomia da dança de suas letras, formas, significantes e significados. Para além da lógica formal, o sentido só pode ser encontrado através do próprio sentido, já que só faz sentido aquilo que é sentido.
Abramos não só nossas cabeças, mas nossos corações, sentindo as palavras. A palavra saber tem sua origem greco-latina, significando não só entendimento racional, mas também sabor. Da mesma forma que, em hebraico Daat, a sefirá invisível da Árvore da Vida, significa conhecimento tanto no seu sentido de saber quanto relativo ao conhecimento íntimo sexual. Saber as palavras é saboreá-las em sua intimidade.

Vejamos agora a própria palavra perdão, tomada poeticamente. Ela pode ser tomada como aumentativo, um perdão, nos apontando para uma grande perda. Que perda é essa? é a perda da ilusão de perfeição. Só se pede perdão, ou se é pedido, através da admissão do erro, do engano, do equívoco, da falha, da maldade, etc. Desse modo o perdão é a fragmentação narcísica, quando a imagem de perfeição se parte. O perdão é o parto do self, pois quebrando a idealização da imagem onipotente do ego se revela a essência verdadeira do ser.

Esta quebra parteira é que dá a partida para a correção do desvio do alvo, desvio que é o significado etimológico hebreu da palavra pecado. O alvo sendo o próprio crescimento, no trabalho da reunificação, implica que pecar é não crescer, em todos os sentidos quer seja pessoal, social, humano, amoroso, material e sobretudo espiritual.

Aprendemos com a Árvore da Vida que no caminho da ascensão, na busca da transcendência, do próprio re-ligare com o retorno ao divino, quando galgamos para um nível superior deixamos um pouco para trás o nível anterior, são as perdas necessárias para o nosso crescimento. Desde Abraão coloca-se a partida do lar paterno na construção do próprio constituinte da nação, tanto israelita quanto ismaelita. No próprio cerimonial do casamento quando se parte a taça é a quebra- perda necessária do laço anterior necessário para a construção de uma nova família.

As perdas fazem parte da tradição judaica, no aprendizado de como lidar com elas. No dia 9 do mês judaico de Av, Tisha B'Av, relembra-se grandes perdas. Desde a destruição dos dois Templos Sagrados, dos diversos sacrifícios humanos, dos vários desterros, como o da expulsão das terras de Portugal e Espanha, ou da própria inquisição em que se obrigava, para escapar da fogueira, a desterrar-se do próprio corpo religioso, vivendo a essência de sua crença de forma clandestina, o seu destino da clã, para poder se sobreviver. Tantas lutas, tantos lutos, tantas perdas havidas no território de Malkut, a décima sefirá da Árvore da Vida.

A história do povo judeu coincide com vários exílios, desde o humano adâmico na queda do Éden, ao da terra do Egito, onde a escravidão aglutinando povos, realiza através de sua libertação a consolidação de uma unidade pela fé através da peregrinação no deserto. Nossa história é de idas e vindas, de diásporas espalhando-se pela terra e êxodos com o retorno à terra prometida.

O desterro, enquanto perda da referência à materialidade, traz na consciência da falta o paradoxal encontro com a identidade.

Funda-se assim, na materialidade malkutiana semi-perdida, a identidade Yesodiana. Perde-se a Jerusalém territorial mas apropria-se da celestial, como identidade maior, no retorno a terra prometida em seu paraíso, nas canções do exílio.

Discute-se a partir do desterramento de um povo a questão da sua própria identidade. A questão da identidade judaica é quase tão antiga quanto a história da própria identidade humana. Sempre esteve presente nas grandes discussões rabínicas, acadêmicas ou leigas.

Na afirmação antiga, a descendência judaica era dada pela ascendência, através da linhagem materna, onde o terreno uterino ganha o estatuto territorial que configura a legitimidade dos nascidos fora da pater-pátria-mãe gentil. Hoje em dia, na nova era, tende-se a colocar a ênfase de que a definição se dá pela descendência, isto é, de considerar-se como sendo judeu aquele que conseguir transmitir a sua herança judaica para os descendentes, o que obviamente transcende a simples questão da consaguineidade para o patrimônio humano universal. Assim, a ascendência é garantida pela descendência, dentro do conceito de posterioridade.

Aprendemos com a Cabala a encarar a necessidade da perda. Na própria criação do universo, o Tzim-Tzum é a perda necessária, que se dá por contração divina, para que o Ayn, o Grande Nada seja criado, abrindo espaço para o Infinito e sua Luz Infinita iluminarem a Árvore da Vida na constituição do Any, o eu do ser humano.

Aprendi com o saudoso Reb. Lemle, no casamento de minha irmã, sobre a tradição de quebrar o copo na cerimônia do casamento. Laços partidos presentes nos novos laços unidos. No momento de alegria intensa da união, contatamos com as nossa perdas lembramos das perdas que se realizam, na partida dos filhos de seus lares paternos e também das faltas1 que nos entristecem, pelas pessoas que não estariam ali presentes. Não se trata de um masoquismo, mas de uma polarização dos momentos de perdas e ganhos. Lembrar da tristeza no momento de alegria para que nos momentos que houver o predomínio da tristeza da perda possamos elaborá-la e lembrarmos da união que ela encerra e que prenuncia a alegria vindoura. O problema não é a perda mas o que fazemos com ela. Realizá-la e encará-la com humildade ao invés de humilhação é o aprendizado básico do processo de aceitação para transmutá-la, tal como na consagração e exaltação à D's vivido na reverência do Cadish, a prece dos enlutados, quando no luto pela perda de um ente querido, quando mesmo com toda dor louvamos e exaltamos seu Santo Nome.

As perdas acham-se intrinsecamente ligadas aos ganhos. Dessa forma, por exemplo, podemos compreender que após a tragédia do holocausto da segunda guerra criou-se uma comoção internacional que possibilitou a criação do Estado de Israel. Sua solidificação, é claro, se deu através de lutas, consolidando o retorno e a identidade de um povo.

Entretanto, de uma luta defensiva constitutiva, como a de Davi contra Golias, partiu-se para uma ofensiva, agigantando-se e cometendo-se o desvio pecaminoso, multiplicando-se sem o devido crescimento. Ao afastar-se do seu próprio projeto inicial, acabou possibilitando massacres como o de Sabra e Shatila. O que, da mesma forma, acabou possibilitando a criação do Estado Palestino (cujo povo também havia incorporado a definição da pátria uterina).

Com sérios desvios do seu projeto inicial, que não podem mais serem interpretados como pessoais e isolados, como nos assassinatos no túmulo de Abraão e do próprio líder Rabin, o judaísmo israelense vem mergulhando numa profunda crise de identidade, que extrapola suas fronteiras e atinge o judaísmo em toda a diáspora. Quer em nível político e jurídico, como por exemplo nas novas leis de cidadania, confundindo-se geografia com história, quer em nível religioso como na oficial discriminação religiosa interna que rejeita e ataca as linhas progressistas de renovação, quer em nível militar como o próprio assassinato fratricida de seu líder, dividem o povo judeu pretendendo uma pureza ,quase ariana, autodenominando-se de únicos, autênticos e verdadeiros judeus como se fossem os ortodoxos radicais os novos guardiões da eugenia religiosa-político-militar.

A única vantagem é que assim quebra-se o próprio narcisismo da união nacional de um povo. O nome desta praga emocional se chama fundamentalismo, que quer dizer fanatismo dos fundamentos. Esta é a qlipoth de Yesod, ou seja o apego, que vem a ser a não aceitação da perda. Apegaram-se tão concretamente a Jerusalém terrena que abrem túneis para lugar nenhum, desrespeitando os limites territoriais de Malkuth .

É claro que a própria existência substantiva material tem uma importância básica. É preciso que algo exista para que alguma qualidade ou atributo lhe seja adjetivado. No ser humano primeiramente temos a existência da vida , de um corpo físico vivo, ao qual teremos uma identificação masculina ou feminina. Da mesma forma que não podemos negar a importância do ponto de partida malkutiano, para não superdimensionarmos a imagem yesódica, não podemos , sobretudo, esquecer de que o apontamento da identidade sexual de Yesod é para a própria essência vital do ser , a beleza de Tiferet, na verdade do amor. Em linguagem humana é preciso o desapego do ego para chegarmos ao self.

Trata-se de um verdadeiro processo de despojamento, que se intensifica até chegarmos ao dia do Yom Kipur, dia da ex-piação, purificação. Passamos por processos que se iniciam pelo próprio luto das perdas, realizamos rituais de purificação, como o Tachlich ou do Qualipothim ( seriam relativo às qlipoth? ) que visam a obtenção do perdão ex-piatório purificador no dia santo.
Minha vivência do dia mais intenso dos dias intensos, é primariamente de mortificação do corpo na afirmação que a vida necessita de vida. A grande imagem egóica sofre no período de 24 horas um processo de retificação à sua verdadeira dimensão.

O corpo físico se afirmando pela sua negação se descobre como resultante de um ato do amor divino. A própria identidade do ser ali colocada na sua dimensão coletiva comunitária e cultural transcende na espiritualidade.

O Itzcór dos enlutados é uma das rezas mais assistidas deste dia, muito embora ela esteja presente também em outros dias consagradamente santos. É que neste dia do perdão as perdas se evidenciam. Percebemos nossa pequenez cósmica. Quando, após ter atravessado a porta dos homens, atravessando os pensamentos gloriosos do poder de Hod e dos sentimentos vitoriosos que se apossam de Netzah, chegamos no coração de Tiferet, percebemos nossa roda vida, na volta do trajeto sentimos o quanto deixamos de partir. Nos abrimos então ao Julgamento Guevurótico com temor e a Misericórdia Hessédica com amor e compaixão.

Como é difícil pedir perdão! Após conseguir pedí-lo a D's , percebi que ainda não o tinha dado a mim mesmo. Eu senti que Êle em sua clemência magnânima já havia me concedido, mas eu não conseguira recebê-lo, pois ainda estava com o coração fechado. Por isso temos o auxílio do som sagrado do Shofar para abrir nosso peito, como Josué fez para abrir os portais de Jericó. Percebi, de um lado a relação com outras pessoas, minhas dificuldades de pedir ou dar a elas o meu perdão. Não se trata do outro merecer ou não pois estaríamos na arrogância despótica. Mas, nada se comparava a minha própria renitência de perdoar-me comigo mesmo.

Lembrei-me de meus tempos de jovem na sinagoga junto a meu pai, achando que aqueles que não compareciam nos serviços religiosos regulares, eram todos hipócritas. pois na semana seguinte já não estariam mais ali. Embora houvesse realmente uma certa dose de falsidade, hoje, talvez por me encontrar do outro lado, revejo a coerência absoluta que advogava então. A dificuldade do perdão residia na impossibilidade de prometer convicta e totalmente que não mais pecaria, o que não poderia fazê-lo em sã e sincera consciência. O pedido de perdão só pôde se dar apesar de. Não como promessa, mas como compromisso. Não é por outra razão que exatamente a primeira prece do Yom Kipur é o Kol Nidrei, que versa sobre todas as promessa feitas não cumpridas.

Paradoxal condição humana esta que sabendo-se imperfeita busca o aperfeiçoamento, mesmo sabendo que não atingirá a perfeição. É tão terrível aquele que vive preso ao seu sonho quanto aquele que não o possui ficando prisioneiro da realidade. No caminho do Dia do Perdão trata-se ainda de se verificar perdas, falhas e descontinuidades do re-ligare.

Uma lâmpada que não voe ou apite obviamente não está com defeito, pois não é feita para isso, mas é sinal de sua própria imperfeição. Aceitarmos nossa própria humanidade em sua imperfeição é o primeiro estágio para podermos atingir o perdão.

Mas, da mesma forma que em relação aos outros, antes do perdão, vem muita raiva, senão não se teria do que perdoar, já que a indiferença não necessita ela mesma de perdão. O ódio que clama por vingança, travestindo-a de justiça, não se importa de queimar as próprias mãos jogando no próximo o carvão incandescente. É o próprio amor que clama o perdão. Não é nenhum favor perdoar ao outro, já que nós mesmos lucramos imediatamente ao sentirmos, nossos corações e mentes mais leves.

Não temos condições de entender os desígnios divinos expostos em sua emanação de justiça e misericórdia, pois somente D's consegue ser ao mesmo tempo justo e bom. Para se atravessar este grande abismo há de se ter um conhecimento invisível que Daath oferece para nos revelar-nos uma suprema compreensão de Bináh da sabedoria de Chochmah.

1 Falta também significas erro. Errante também é vagante.


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