JURISPRUDÊNIA CELESTE

Rabino Nilton Bonder


 

 

Talvez interessasse apenas aos juristas uma análise de como o Supremo Tribunal Celeste (STC) soluciona suas questões de direito. No entanto, como já difere fundamentalmente a lei celeste da terrestre fazendo-nos a todos automaticamente réus até que se prove o contrário, talvez seja esta matéria de interesse geral.

Escrevo isto em tempos do Dia do Perdão dos judeus uma vez que este antecipa o julgamento do dia de nossa morte para pequenas mortes a prazo, o que tem como vantagem inegável a possibilidade de emendas e de se amortizar as dívidas antes que seus juros se tornem infernais.

A regra número um é que somos acusados com base naquilo que não fizemos ao invés do que fizemos, como nos tribunais terrestres. Os flagrantes delitos, aqueles que não podem ser negados e passíveis de punição pela legislação celeste, são tudo que deveríamos ter feito e não fizemos. Este item é determinante na surpresa de encontrar-se entre os condenados tantos que nesta terra passaram por santos e justos. Não é tanto o que fizeram, mas o que poderiam ter feito. Esta relatividade do "bem" por conta do potencial de cada um, daquilo que cada um poderia ter feito, muda por completo o desempenho de pobres mortais. Há indivíduos que realizam o "mal" com pouco potencial para o "bem" e se classificam melhor do que outros que fazem o "bem" com um enorme potencial para fazer o "bem" em escala maior. Como a preocupação do sábio Reb Zussia que diz temer a derradeira pergunta da promotoria celeste: "Reb Zussia porque você não foi Reb Zussia?".

Mais complexa fica a questão quando reconhecemos que entre o que poderíamos ter feito existe a categoria de "não fazer". Quantos momentos poderíamos ter gerado de pausa e paz em nossas vidas, mas por culpa, obsessão ou neurose, saímos por aí fazendo mais do que deveríamos. Não somos julgados então pela qualidade do que foi feito, mas pela incapacidade de perceber a propriedade de nada fazer em certos momentos.

A regra número dois é que somos acusados sempre com juízos que nós mesmos fizemos.

Quando ouvimos a idéia "julgue os outros sempre favoravelmente" não nos damos conta de que a promotoria celeste só pode usar jurisprudência criada pelo próprio réu. Vamos esclarecer. Digamos que fizemos algo de errado que prejudique alguém. Esta não é evidência qualificada para o júri celeste. Mas se vimos outra pessoa fazer a mesma coisa e a julgamos, então esta peça de direito por nós julgada passa a valer como julgamento para todos as vezes que agimos de forma semelhante. Somos julgados por nosso próprio julgamento. Se passássemos pela vida toda sem passar julgamento sobre ninguém, não poderíamos ser acusados de nada. Infelizmente a grande maioria de nós continua julgando os outros e acrescentando novos itens pelos quais novos processos podem ser abertos contra nós mesmos. Bastante assustador.

Na verdade é esta proposta que dá sustento ao conceito de que todos são culpados até provarem o contrário. Já que há julgamentos por nós emitidos que condenam deslizes semelhantes aos que nós mesmos cometemos, na verdade somos nós os próprios promotores . Somos réus porque já chegamos acusados por nós mesmos. E a defesa é difícil porque, o que "não foi feito" é evidência que pode ser produzida em corte, mostrada e comprovada. Já nossos julgamentos, por sua vez, são em si precedentes incontestáveis.

Como vemos não haveria nenhum julgamento no final de nossas vidas se não tivéssemos o hábito de passar tanto julgamento sobre os outros e se ao invés de temer fazer, temêssemos não fazer. Nós, portanto, somos os criadores desta instância judiciária superior. Ela não existiria se não fosse por nossa própria censura e alienação.

É óbvio que a defensoria faz uso do mesmo recurso que a promotoria. Todas as vezes que não passamos julgamento em situações semelhantes a que a promotoria arrola testemunhos contra nós, servem como atenuantes.

Mas se todo este quadro toma contornos de pesadelo e de sadismo o pior ainda está por vir. Se somos réus, promotores e defesa, tudo ao mesmo tempo, pergunto: quem é o júri que determina a sentença?

A severidade de nosso próprio julgamento ultrapassa qualquer outra medida externa. Se alguém nos agride, podemos nos defender ou até mesmo correr para longe tentando nos preservar. Mas quando nós mesmos nos agredimos é um ato supremo de violência, pois não temos como nos defender e nem para onde fugir. Toda a noção de inferno é constituída da impossibilidade de se livrar da agressão constante, incessante e eterna.

Um dia do perdão serve para perdoar-nos a nós mesmos, mas isto não é feito sem um compromisso por um ano de mais ousadia onde faremos mais o que não faríamos e um ano de mais tolerância e carinho para com o mundo a nossa volta. E se não fizermos isso pela sensibilidade de que é a melhor maneira de vivermos com qualidade, que seja por terror de nos vermos envolvidos em litígios com nossa consciência.


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