Parashá VA YETZE- Comentários


RAQUEL E ESAÚ
Haim Chertok

Uma das primeiras coisas que faço quando volto para casa vindo da sinagoga sexta-feira à noite, é abençoar minhas duas filhas com a benção tradicional: "Que Deus as faça como Sara, Rebeca, Raquel e Léa." Esta seqüência, das matriarcas está de acordo com as gerações, mas não é cronológica, pois a irmã mais nova, Raquel, toma precedência à sua irmã mais velha, Léa. Esta é uma inversão convencional, que reflete tanto a tradição folclórica, tal como aparece no midrashim, quanto a visão predominante dos comentadores bíblicos: a prioridade tem a ver com Raquel. Afinal, ela é a bela donzela, a esposa amada, a mãe de José: tendo morrido pateticamente de parto, ele também é uma mediadora compassiva popular. Mal amada, de vista fraca, Léa é ... bem...Léa.
Agora, Nachmânides teve o cuidado de observar que Jacó, na verdade, não desprezava sua primeira esposa Léa: só que ele, como nossos próprios comentaristas, a amava menos . Um midrash típico é o que mostra Deus admoestando Jacó pelo único registro dele perdendo a paciência com as tolices de Raquel ( Gênesis 30:2; todas as referências subseqüentes são ao Gênesis ). É como se toda sexta à noite, ao redor de centenas de milhares de mesas, Raquel suplantasse Léa e reclamasse sua retribuição perpétua por aquela noite em que Léa a suplantou na chupá de Jacó, fazendo com que Jacó trabalhasse ainda sete anos mais para o papai Labão para adquirir Raquel.
No entanto, a narrativa é um cruzamento de incidentes e evidências que coloca sobre Raquel uma carga de erros, desfavor divino e punição: ela é arrogante, fica estéril por muito tempo, rouba, lança mão de truques e se condena à morte no parto. Embora esterilidade e morte prematura não sejam sinais inequívocos do descontentamento de Deus, a imaginação bíblica também não as compreende como simples acasos. O que teria limitado a visão, tanto do judaísmo popular quanto do rabínico, a ver Raquel, exclusivamente através do prisma do amor de seu esposo e os méritos de seu filho?
As correntes estruturais da narrativa precisam ser claramente delineadas. A relação entre as duas irmãs ( bem como de cada uma com sua criada e com Jacó) pode ser melhor explicada como uma extensão da conexão conflituosa entre Jacó e seu irmão gêmeo ofendido, Esaú. Vinte anos antes, Jacó tinha fugido de Canaã temendo por sua vida, após ter tomado a benção do pai Isaac na base da fraude. Mesmo depois de todo este tempo - um exílio de servidão que deve ser visto tanto como um período de crescimento quanto de punição - ele se sente em perigo mortal. Tanto sua luta em Jabok e seu encontro com Esaú irão validar a busca de redenção de Jacó em Haran. O processo em si, entretanto, tem permanecido oculto porque é percebido principalmente em termos de segmentos simbólicos deslocados que parecem ter saído da rivalidade entre as irmãs.
Mas esta externalização resultou numa má interpretação. A essência da dinâmica psicológica que Jacó tem que suportar, é a de que ele tem que se emendar das coisas erradas que fez a Esaú ao experimentar ( como Esaú experimenta ) uma privação do que deveria ser dele por direito. Até aqui, de fato, se entende: assim ele é privado, embora por pouco tempo de Raquel. A virada decisiva, no entanto, é que a substituição de Léa por Raquel na noite de núpcias não é um quid pro quo pelo sofrimento que Jacó causou a Esaú. Na verdade a miopia espiritual e a cegueira afetiva, que fazem com que seu apetite indisciplinado reine, é que iniciam vinte anos de julgamento dos quais ele emergirá purificado, simbolicamente uno e co-extensivo com seu irmão Esaú.
Falando esquematicamente, o Esaú com suas lentilhas equivale ao Jacó com sua bela Raquel. Jacó foge para salvar sua vida, mas na narrativa este motivo para a fuga está entrelaçado com o pretexto utilizado por sua mãe Rebeca ao seu pai Isaac de que Jacó, diferente de Esaú, não se casasse em Canaã. Porém, tal qual Esaú, Jacó é atraído por aparências enganadoras. Tal qual Esaú, ele sucumbe e inicia um processo de sofrimento.
Ao trocar suas filhas, Labão não só é limitadamente justificável como pais, mas está essencialmente certo. Não fosse pelo processo simbólico maior que Jacó precisa seguir , seu destino apropriado, na verdade, deveria ser não outro que a virtuosa e disponível irmã mais velha. No entanto, a pressão da penitência prevalece; a simetria do enredo requer que ele encontre a saborosa Raquel. Uma aparente complicação, a intervenção de Labão, embora tenha sido tão-somente por interesses próprios, contribui para melhorar a condição moral de Jacó.
Raquel deriva sua posição privilegiada, da qual nenhuma esperteza que ela possa maquinar ameaça destroná-la, inteiramente por ter sido a escolhida de um Jacó no nível mais baixo de sua evolução profética. Neste estágio, como um centro de consciência, ele é, de uma forma geral, não - confiável. Compondo a ironia da questão, a "Léa desprezada" tem sido, inconsciente, porém inevitavelmente, relacionada a um Esaú estereotipadamente invejoso: de mais velho para mais velha, de desprezado para desprezada, de rejeitado para a de segundo plano. O ponto de apoio, naturalmente, é o próprio Jacó.
Uma vez longe da órbita de seu temível irmão e de sua mãe dominadora , fica claro que a imaginação de Jacó é cativada pelo "pretexto"- ele busca uma esposa. Em Bethel ele deita sua cabeça numa pedra e sonha com uma escada em direção em direção ao céu e com a promessa do "Deus de Abrahão, seu pai, e deus de Isaac" de que sua semente se "espalhará" em todas as direções. Esta famosa visão tem sido infinitamente explorada, mas seja lá o que for que ela pressagie, não seria também a visão seminal de um jovem disposto a descobrir uma noiva adequada de forma a espalhar a sua semente?
A medida da insensibilidade de Jacó é sua resposta ao sonho: "Certamente o Senhor está nesse lugar; e eu não sabia ... e Jacó fez um juramento dizendo: "Se Deus estiver comigo e me mantiver neste caminho que estou indo... então o Senhor será meu Deus..."( 28:16;20). Se a aura de reverência criada por gerações não fosse tão persistente, não seria difícil notar que a primeira observação de Jacó atesta uma crença nas deidades locais, que seu juramento de lealdade ao Deus de seus antepassados é meramente condicional. Aqui ele se encontra num contraste surpreendente com seu avô Abrahão, quando primeiro o encontramos. Na verdade, serão precisos os vinte anos em Haran para que Jacó atinja o nível de desenvolvimento espiritual inicial de Abrahão. Em resumo, nós temos uma base razoável de conjecturas para questionar o julgamento deste jovem.
Depois disso, Jacó chega ao que pode ter sido o mesmo poço no qual Eliezer encontrou e reconheceu em Rebeca os sinais de mérito que a identificavam como uma esposa apropriada para Isaac. Uma grande pedra fecha a boca do poço e Jacó é informado de que Raquel, filha de Labão, está se aproximando com seu rebanho. Ele havia sido encarregado por Isaac de tomar para si uma filha de Labão e havia tido um sonho de fecundidade no caminho - oh, como o jovem viajante está predisposto a se enamorar quando Raquel aparece! O texto, entretanto, é tão cheio de sinais verbais e abundante em ironia dramática, que tanto Jacó quanto a maior parte dos leitores parecem despreparados para compreender ou prestar atenção.
Quando Raquel chega, Jacó diz aos pastores " ainda não é dia alto, nem é hora do rebanho ser reunido..."(29:7). Sua intenção, naturalmente, é a de que eles o deixem sozinho com sua parente. O que ele atinge no processo, entretanto, é uma nota verbal de prematuridade, de algo ocorrendo cedo demais que colore o encontro decorrente - e as duas décadas seguintes também.
Só de ver a bela jovem, Jacó "rolou a pedra da boca do poço e deu de beber ao rebanho de Labão ... E Jacó beijou Raquel e ergueu sua voz e chorou" (30:10-11). Simultaneamente energizado e conquistado, o antes delicado Jacó move o grande obstáculo, agindo como o matador de dragões com a princesa em perigo. Entretanto, a pedra multíplice também surge em relação de contraponto à pedra que Jacó erigira recentemente em Bethel para marcar seu juramento ao Deus de Abrahão e Isaac. Movê-la joga uma sombra agudamente ambígua neste primeiro encontro com sua amada, um claro aviso de que seu juramento a Deus e a Raquel talvez possa se originar de correntes contraditórias de lealdades a até de um senso de si próprio.
Assim que, ato contínuo, após dar água ao seu rebanho, ele impulsivamente a beija. Agora nós nos enternecemos com o jovem Jacó enamorado, mas isso não deve nos cegar quanto ao que estas ações predizem. Eliezer não se encantou com Rebeca simplesmente porque ela era atraente. Na cena do poço deles, Rebeca se apressa em dar água aos camelos dele. O que fica assinalado nesta repetição é a troca de papéis: Jacó é que faz a ação meritória de dar água; mais incisivamente, Raquel não a faz. Além disso, enquanto os comentadores têm tido poucos problemas em fechar os olhos para o abraço afetuoso de Jacó na prima Raquel em seu primeiro encontro, dentro do contexto ele toca em uma outra nota prematura. O texto não registra nenhuma relutância da parte de Raquel em ser beijada por um estranho bonitão, que se identifica como seu primo somente depois que eles se separam.
Em resumo, virtualmente tudo neste encontro no poço aponta para um equívoco. Olhando de fora da cena, as razões tornam-se evidentes. A "missão" de Jacó em Haram é só secundariamente a de buscar uma esposa. Ele se antecipa a si mesmo. Primeiro ele tem que agir de forma a merecer a promessa de Deus recebida em Bethel. O fato de Jacó ter-se enamorado porque ela era "bela de formas e agradável de se olhar" pode ser fácil de se entender e perdoar, mas esta é a própria medida da distância que Jacó tem que percorrer até que fique pronto para sua tarefa principal de vida.
Amar a irmã mais nova é relativo a amar a si mesmo, o irmão mais novo. Isto é essencialmente narcisista, um ato de auto-estima que é uma pedra no caminho ( prenunciando, a propósito, esta mesma falta em José, o primeiro filho do jovem casal). Isto será burlado pelas maquinações a tempo de Labão e mais tarde será superado por um Jacó mais maduro que deve, se não vir a amar, ao menos aprender a dar à mais velha, à "outra", o princípio da primogenitura, o que lhe é de direito: há equilíbrio e justiça inerentes a isso. Claro que Deus favorece Jacó sobre Esaú - Jacó é o recipiente escolhido - porém, a Bíblia esclarece repetidas vezes que o princípio da prioridade do primogênito só pode ser desfeito por um alto preço. Este será pago.
Há ainda mais uma linha muito sutil passando por este encontro entre Jacó e Raquel que o amarra à teia de ilusões principal. À primeira vista, a Raquel mais nova e favorecida parece uma parceira natural para o Jacó mais novo e favorecido. Entretanto, quando os irmãos lutaram no ventre de Rebeca, foi Esaú quem apareceu no mundo primeiro e assim pareceu prevalecer. A imagem de nascimento na cena do poço é propícia e ajuda a estabelecer a ligação. O rolar da pedra da boca do poço por Jacó sugere não só sexualidade mas um parto também, na remoção de um obstáculo da boca do ventre ( isto vai aparecer mais adiante em outra conexão). Agora é Raquel que entra em cena primeiro em Haran. Uma ligação cinzenta, porém palpável, com Esaú foi esboçada: dentro do contexto, chegar primeiro é relativo especificamente a uma deficiência de caráter - uma imperfeição.
Assim como acontece com Esaú, Raquel parece ter todas as vantagens. Assim como com Esaú, tal visão seria algo míope. ( Ironicamente, a fraqueza de visão é deslocada para Léa). Nesta álgebra emocional de equações simultâneas, os segundos da cena - Jacó e Léa - são os verdadeiramente preferidos. Os astigmáticos - pelo fato de estarem tão perto da figura que perdem a verdadeira perspectiva - interpretam erradamente: assim como o cego e idoso Isaac prefere Esaú, assim o Jacó imaturo se apaixona por Raquel. a ironia que salva: tanto pai quanto filho são enganados pelo jogo dos acontecimentos que tendem para a reconciliação fraterna. O preço: Raquel , simbolicamente como Jacó, precisa morrer!
A visão normativa da manobra essencial de Labão parece-me estreitamente adequada: Jacó enganou Isaac; ele é, por sua vez, enganado pelo cunhado de Isaac ( e seu primo) através de uma artimanha que explora a inabilidade da vítima de ver claramente - no caso de Jacó, tanto a identidade de sua companheira na cama quanto as deficiências de sua amada. O calejado Labão já havia dado um claro e honesto aviso de que era astucioso quando cumprimentou pela primeira vez seu sobrinho, anunciando que "... tu és o osso de minha carne".
No entanto, para além do crédito de ter posto em movimento uma seqüência redentora de acontecimentos, Labão merece uma leitura menos preconceituosa. Tal como Esaú, ele é vítima de um massacre rabínico excessivo. O ato de Labão - a substituição de irmã por esposa - prenuncia personagens da estatura de Abrahão ( que por duas vezes disse que Sara era sua irmã) e Isaac ( que utilizou o recurso mais uma vez com Rebeca). O sentido é o de que Labão de Haran personifica a linhagem normativa, patriarcal, que sofre um desagravo nas mãos de Jacó. Sua trapaça está comprometida com a defesa do princípio conservador de continuidade e sucessão em ordem para a chupá: "Isso não se faz em nosso lugar, dar a mais nova antes da promogênita"(29:26-27). Não, na verdade, em lugar nenhum! Sejam quais forem suas falhas, a intervenção de Labão para efetuar a reabilitação de Jacó é essencial. Ele não é um vilão.
Jacó e Labão concordaram que o jovem trabalharia por sete anos para ter a mão de Raquel, mas Jacó acorda de sua noite de núpcias logrado. Então ele concorda em dormir por sete noites com Léa antes de receber Raquel, pela qual ele trabalhará mais sete anos. Sete anos e sete noites parecem um período adequado de serviço; judaicamente, sete transmite a noção de completude, como nos dias da semana. Porém, poucas coisas em Haran são o que parecem ser. Dentro do contexto de nascimento e parto, o significado de sete é revertido, sete meses sendo o período de prematuridade. Assim como antes, pré ou imaturidade tem ligação com Raquel. Mais tarde, ocorre que só depois de Léa dar à luz sete filhos que "Deus se lembrou de Raquel e ... deu ouvidos a ela e abriu seu ventre "(30:22). ( Em última instância, Raquel paga o duro trabalho de Jacó por ela com um duro trabalho seu e morre durante o trabalho de parto de um Benjamin provavelmente prematuro). O ponto urgente na inversão do sete é que ela se relaciona com a auto-estima; Raquel não é o que aparente ser e é incapaz de mudar.
Depois que Léa tem quatro filhos, Raquel admoesta seu marido: "Dê-me filhos ou morrerei", ao que Jacó retruca: " Estarei eu no lugar de Deus que nega o fruto do ventre?"( 30:1-2). Por fim, ele se zanga. Imediatamente nos lembramos de uma situação paralela, quando Isaac procurou a ajuda de Deus para que Rebeca pudesse conceber. Raquel acusa Jacó por sua esterilidade, um equívoco que sublinha sua superficialidade e sua concepção inadequada da mediação de Deus. Isso também evoca a similar pobreza espiritual de Jacó antes em Bethel. Ele cresceu. Este é um exemplo - outros se seguirão - da maturação espiritual de Jacó, ligada ao deslocamento para Raquel das mesmas falhas que ele precisa transcender.
Há ainda uma outra dimensão para a raiva de Jacó. A ameaça dela de que "ou então eu vou morrer" lembra as palavras de Esaú - "Estou a ponto de morrer"(25:32) - quando ele trocou seu direito de nascimento por um prato de lentilhas. As palavras dela desencadeiam, então, não só uma pontada de remorso por sua antiga duplicidade, mas talvez também uma faísca de reconhecimento: embora ale e Raquel sejam os irmãos prediletos, é Esaú quem é a contraparte secreta de Raquel. Jacó escapou com vida de Canaã somente - mesmo que só por um momento - para se descobrir casado com a substituta de Esaú.
Rejeitada, a próxima tática de Raquel é a de oferecer Bilá, sua criada pessoal, a Jacó para que ela "possa ser perpetuada através dela", um expediente que nos lembra a exploração de Hagar por Sara. e assim como com Sara e Hagar, o estratagema parece funcionar - à primeira vista. Bilá concebe Dan... e depois Naftali, o que leva uma Raquel exultante exclamar: "Quão poderosos foram os duelos que travei com minha irmã e eu prevaleci"(30:8). Assim como Jacó foi mais esperto que Esaú, Raquel parece sobrepujar Léa.
A vitória é ilusória. Léa, diferente de Hagar, é uma esposa inteiramente legítima. Pela primeira vez na contenda entre irmãos bíblicos, sem apelar para a violência, a mais velha se mantém em seu lugar. Léa contra-ataca o joguinho de Raquel com Zilpá.
O ganho de Raquel é anulado com o rápido nascimento de dois filhos para Zilpá. Esta curva de eventos prefiguram um arco posterior de narrativa: Raquel parecerá triunfar postumamente através da regência de seu primogênito José no Egito e sua dominação de todos os outros irmãos. A longo prazo, entretanto, as tribos de José serão das primeiras a desaparecer. A última virada dará os louros a Léa através de seu filho Judá, a tribo através da qual os judeus mantiveram sua identidade entre as nações e pela qual se profetizou que o Messias virá.
Ainda outro estratagema de Raquel. Quando Reuben traz para sua mãe Léa algumas mandrágoras, Raquel troca uma noite de direito conjugais pela erva que tinha fama de facilitar a concepção. Novamente, o tiro sai pela culatra. Léa concebe e o tem um quinto filho; Raquel permanece estéril. Além de sublinhar a contínua fé de Raquel em superstições ao invés de Deus, essa história das mandrágoras marca uma articulação simbólica vital na redenção de Jacó. A questão da benção roubada é vingada na primeira noite nupcial, mas a questão do direito de nascimento arrancado de Esaú sob coação ainda está pegando fogo. É a isso que as mandrágoras de Léa se referem propriamente.
As situações básicas são acentuadamente paralelas. Esaú, desmaiando de fome, renuncia ao seu direito de primogênito por um prato das lentilhas de Jacó. É como se Esaú estivesse tão dominado ( ou obtuso), que mais tarde, quando se vê destituído das bênçãos do primogênito, ele não consegue formular (ou se lembrar) nenhuma conexão com esta perda anterior. Em Haran é Raquel, faminta por um filho, quem faz a troca desigual: a cama de Jacó pelas mandrágoras ineficazes. Desta vez, é hora da mais nova não perceber as conexões essenciais relativas ao nascimento: assim como ela - não compreendendo que a partir de Sara, as primeiras esposas normalmente geram os filhos essenciais - cometeu um erro crasso ao concordar com a noite de núpcias de Jacó e Léa, ao ceder a cama de Jacó mais uma vez, ela comete outro erro crasso. Léa concebe Issachar naquela mesma noite!
Através de situações paralelas e repetições de frases, o texto atrela insistentemente Raquel, com sua míope impulsividade, a Esaú, mas como impostora ele se torna relativa ao próprio Jacó. Seu despojo é uma peça de ação simbólica deslocada que se encaixa e que nos aproxima do ajuste de contas entre os irmaõs; ele é uma précondição para o retorno de Jacó para Canaã. Um toque especialmente espirituoso é o de que Reuben - nesta seqüência personificando o primogênito, o princípio homem - do- campo de Essas - é o instrumento que fornece à La a isca perfeita para atingira vingança simbólica de Essas.
Os anos passam e, prenunciando o encontro anticlimático da paz entre os irmãos brigados, não ouvimos mais falar de nenhum atrito entre as irmãs. Apesar de seu sogro ter alterado seus ganhos arbitrariamente, Jacó continua a trabalhar fielmente. Isto é vital: Jacó, que em Canaã era um homem de astúcia, precisa trabalhar a veia que tenda à fraude em seu caráter. Quando os seus 20 anos de trabalho para Labão chegam ao fim, é Raquel quem rouba os ídolos de seu pai - os terafim - e os esconde em seu alforje. Os comentadores têm exercitado sua engenhosidade admiravelmente ao racionalizar este roubo aparentemente gratuito perpetrado por uma Mãe de Israel. Este é um ato, no entanto, perfeitamente consonante com a Raquel cujo conhecimento de Deus é da espessura de uma folha de papel: aquela que exige um filho não a Deus, mas a Jacó, que se fia não a orações, mas em mandrágoras e que agora quer os terafim porque, tal como o Jacó antes do seu sonho/visão em Bethel a quem ela é relativa, ela acredita tanto nas divindades locais quanto no Deus de Abrahão e Isaac.
Entretanto, narrativa transcende as motivações conscientes. Quando Labão, na busca, acusa seu genro ( o espertinho reformado) de roubo, Jacó sem saber condena a si e a sua amada: "Seja com quem for que encontrares teus deuses, ele não viverá"(31:32). Os terafim estão escondidos debaixo da Raquel sentada. Ela mais tarde vai morrer no parto: eles prevalecem especificamente sobre seu ventre. Além disso, no mesmo arco narrativo de deslocamento simbólico, o próprio Jacó sofre a morte através de sua substituta Raquel. Na verdade, para que Jacó possa atingir a redenção, Raquel precisa morrer.
Lembremos, logo antes do primeiro encontro de Jacó com Esaú, o famoso encontro de Jacó com um misterioso emissário, no caminho de Jabok. Eles lutam até o raiar do dia. Apesar de ter sofrido um ferimento na coxa, Jacó se recusa a soltar seu adversário: "Eu não vou lhe soltar, a não ser que você me abençoe." A que seu antagonista responde: "Seu nome não será mais Jacó, mas Israel, pois você lutou com Deus e com os homens e prevaleceu"(32:26-29). Exigindo o nome de seu oponente, Jacó obtém sua bênção.
Que bênção ambivalente esta! Este duelo em Jabok é, claramente, um dos assaltos - e não o último - numa contenda demorada. Ao emergir primeiro do ventre, Esaú triunfou na partida. ( Com uma simetria primorosa, Esaú vai metaforicamente presidir a última abertura de ventre também - o nascimento de Benjamim que resulta na morte de Raquel). Depois disso em Canaã, Jacó vence todas as escaramuças, porém - como se vê no emblema do ferimento que ele sofre em Jabok -, somente mediante um custo substancial que precisa ser pago.
Haran é o inverso de Canaã: Raquel, a predileta, é relativa a Jacó, porém, ele deve testemunhar e aturar os sucessivos triunfos de Léa, a mais velha, como um julgamento de Deus. Finalmente, o nascimento de José assinala não a maturação de Raquel, mas o cumprimento do período de servidão de Jacó. Então, logo antes de um renovado encontro com Esaú, Jacó encontra e extrai uma benção de uma figura noturna em Jabok. Mas não é Jacó que prevalece, mas Israel! Jacó, o "esperto" experimenta um ferimento mortal na mesma região procriativa que levará Raquel. ( Não haverá mais filhos). Na verdade, os amantes terrenos Jacó e Raquel morrem perto um do outro ao longo do caminho: Jacó quando Deus confirma a bênção de Seu emissário lutador e Raquel imediatamente após o parto de Benjamim (35:18). Eles são pré-figurações dos Filhos de Israel que não conseguem chegar a Canaã, que morrem ao longo do caminho de 40 anos ( o dobro dos 20 de Jacó).
Jacó e Raquel expiram en route, mas Israel se encontra eternamente ao lado de Léa no local onde se encontram enterrados os Pais e as Mães de Israel em Hebron. Raquel é o amor duradouro de Jacó, porém - não obstante a hegemonia temporária de seu filho José - desta vez é a irmã mais velha, Léa, que é a preferida de Deus. Há uma resposta inarticulada e de outra forma inexplicável para esta restauração radical: Esaú, que se colocava como chefe de uma tropa de guerra, surpreendemente se permite ser pacificado quando finalmente sua tão sonhada oportunidade de vingança aparece. Nem a bajulação de Jacó nem seus presentes dão conta da transformação. Esaú, certamente, percebe pouco, mas o sinal objetivo da narrativa de restauração e recompensa é precisamente sua abnegação da violência.
Depois disso, e só depois disso, é que a promessa a Abrahão pode ser reiterada e renovada a Jacó: "Frutifica e multiplica-te; um povo e um grupo de povos serão de ti e reis de teus flancos sairão. E a terra que dei a Abrahão e a Isaac, a ti a darei; e à tua semente depois de ti darei a terra" (35:11-12).
O filho mais velho Esaú - o escolhido de seu pai -, e a filha mais nova, Raquel - a escolhida de seu esposo -, não são os preferidos de Deus, que com justiça percebe méritos e potenciais maiores para preencher um desígnio maior em seus rivais. O mais forte e a mais bela são parceiros secretos num drama meta-histórico que se coloca além da sua ( e da nossa) total compreensão. Ainda assim, seus respectivos papéis são vitais para o desenrolar da história e ambos exigem o que lhes diz respeito da personagem mais favorecida, cuja maturação moral e espiritual seria inconcebível sem a intervenção deles. O que é espantoso é que personalidades no fundo tão congruentes como as de Esaú e Raquel tenham gerado veredictos tão disparatados, tanto no rol comentadores rabínicos reverenciados quanto das gerações de leitores leigos.
Se já é mais do que hora do cristianismo descartar decisivamente a ligação alegórica que faz de Esaú como proto-Judas-judeu, talvez não seja prematuro para o judaísmo reavaliar sua percepção tradicional de Esaú como proto-romano-critão. Muito embora as conseqüências desta última má percepção não tenham sido nem de longe tão sangrentas historicamente, ela me parece uma distorção do texto que já não serve mais a nenhum propósito justificável.
Tenho certeza de que minhas filhas estranhariam se alguma sexta à noite eu substituísse Raquel por Léa na seqüência do prólogo à benção sacerdotal. Eu confesso, entretanto, que por algum tempo agora eu tenho feito uma anotação mental, dizendo "Raquel", mas na verdade querendo dizer "Léa"! Algumas vezes , eu fico a imaginar se, naquele momento crítico, quase cego, mas não totalmente enganado, Isaac não teria feito algo do gênero.

Sobre o autor: Haim Chertok é um escritor que vive em Israel. Seu último livro é Stealing Home : Israel Bound and Rebound, publicado nos Estados Unidos pela Fordham University Press em 1987.

Traduzido da Tikkun, Vol. 1 num 2,1987



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