Parashá VA YERA- Comentários



O SACRIFÍCIO DE ABRAHÃO

Davi L. Bogomoletz

BERESHIT ( GÊNESIS), capítulo 22, 1-19

1 - E após estas coisas o Deus experimentou a Abrahão. E disse Eis-me;
2 - Disse-lhe Toma por obséquio teu filho teu filho-único ao qual amas a Isaac e vai-te à terra de Moriá e eleva-mo em holocausto sobre um dos montes de que te falarei;
3 - Madrugou Abrahão de manhã albardou seu jumento e levou dois servos com ele e Isaac seu filho e partiu lenha de holocausto e ergueu-se e foi ao lugar de que o Deus lhe havia falado;
4 - No terceiro dia elevou Abrahão os seus olhos e avistou o lugar ao longe;
5 - Disse Abrahão aos servos Sentai-vos aqui com o jumento e eu e o rapaz iremos até aí e nos prostaremos e voltaremos até vós;
6 - Tomou Abrahão a lenha do holocausto e a pôs sobre seu filho Isaac e tomou em sua mão o fogo e o cutelo e foram-se a andar os dois juntos;
7 - Disse Isaac a Abrahão seu pai Meu pai Disse Eis-me meu filho Disse eis o fogo e a lenha mas onde o cordeiro para o holocausto;
8 - Disse Abrahão Deus verá para si o cordeiro do holocausto meu filho E foram-se andar os dois juntos;
9 - Chegando pois ao sítio de que o Deus lhe havia falado edificou Abrahão o altar ali e dispôs a lenha e atou Isaac seu filho e o pôs sobre o altar acima da lenha;
10- Estendeu Abrahão sua mão e tomou o cutelo para degolar seu filho;
11- Chamou-o um anjo de Deus desde o céu e disse Abrahão Abrahão E disse Eis-me;
12- Disse-lhe Não estenda tua mão ao rapaz e não lhe faças coisa alguma pois agora sei que temente a Deus és e não me poupaste teu filho teu filho-único;
13- Alçou pois Abrahão seus olhos e viu que um carneiro as havia agarrado aos arbustos por seus chifres Foi Abrahão e tomou o carneiro e o elevou em holocausto em lugar de seu filho;
14- Chamou Abrahão àquele lugar Deus Verá pois será dito Hoje sobre o monte Deus Se fará ver;
15- Chamou o anjo de Deus a Abrahão pela segunda vez desde o céu;
16- E disse Por mim jurei palavra de Deus que por haveres feito esta coisa e não haveres poupado teu filho teu filho-único;
17- Abençoar-te-ei e multiplicarei tua semente como as estrelas do céu e como a areis à beira-mar e tua semente herdará os portões de seus inimigos;
18- E serão abençoados em tua semente todos os povos da terra pois ouviste minha voz;
19- Voltou pois Abrahão a seus servos e ergueram-se e se foram juntos a Beer Sheva e Abrahão assentou-se em Beer Sheva;

( Esta é uma tradução direta do texto bíblico. Nem todos os problemas propostos pelo texto puderam ser resolvidos. Ainda assim, a experiência acima permite ver um pouco mais claramente o "estilo" do texto bíblico, e possui um "sabor" verbal um pouco mais próximo ao original que as traduções existentes . A pontuação, inexistente no texto bíblico, foi substituída por letras maiúsculas no início de cada nova sentença. Ao leitor cabe a tarefa (como se faz com a Bíblia em hebraico) não só de ler mas também de pontuar.)

Dezenove versículos. Dezenove versículos não muito longos contam a história do dia em que nasceu nosso povo, pertencer ao qual nos provoca essa permanente mistura de imenso orgulho, intenso sofrimento e, nos intervalos, extrema exasperação. Em dezenove frases um genial escriba narra uma história que se desenrola ao longo de três dias, envolve concretamente a vida e a morte, a consciência e a alienação, a máxima verdade e a mais deslavada mentira, o mais intenso sofrimento que o ser humano é capaz de experimentar - a morte eminente de um filho - e a maior batalha que alguém da nossa História jamais travou com esse Deus absurdamente absoluto - ao mesmo tempo o extremo TUDO e o mais completo NADA - que nos fundou um dia - talvez naquele exato dia em que ocorre essa pequena história - e nos empurra desde então, nem sempre com carinho, para frente, para lá onde se encontra o Seu desígnio esmagadoramente oculto.

Um dia Abrahão ouviu a voz dizer que era a hora. Ergueu-se ainda noite, preparou o burro, chamou dois peões para segui-lo, acordou seu filho e o levou embora, para a morte. Por três dias caminharam em silêncio. Levavam lenha, fogo e faca. O filho quis saber: "E o cordeiro?" Perguntou: "Pai?" "Sim, meu filho." "E o cordeiro?" A dor do pai nos fere até hoje. A dor de alguém que vai matar um ser amado é mais que a dor de alguém que vai morrer. O pai deu uma resposta: "Deus providenciará o cordeiro, meu filho.

Abrahão já havia mentido, fugindo de casa como um ladrão na noite, para que Sara, a mãe, não se metesse nem se matasse. Agora mente outra vez, pois nem mesmo ele, o supremo herói, teve coragem de dizer; "O cordeiro és tu, meu filho." Fraquejou. Procrastinou a resposta. Fez que não sabia. Mas por que fazer Isaac sofrer antes, se o que o espera é a própria morte? Na não-resposta a Isaac, certamente, está o imenso amor do pai. Ela vai matar o filho, pois o Deus no qual crê é mais poderoso que o seu amor paterno. Mas fazer o filho sofrer de antemão? Para quê? Abrahão já havia mentido anteriormente duas vezes. Em ambas, para salvar a própria vida, em lugares onde a vida não valia nada - só o desejo do poderoso tinha valor. Agora mente para prolongar a vida de seu filho, para não matá-lo antes da hora.

Isaac e Abrahão andam juntos. Fora esse curto diálogo, nada mais. E o que mais haveria? Que Isaac entendeu, podemos adivinhar. Quando Abrahão o amarra ao altar ( como se fazia com os animais a serem sacrificados) ele não protesta, não berra, nada diz. Ele já sabia, ele já havia compreendido. Isaac, o filho amado, entende que ele é um instrumento, não uma vítima. A visão de um sofrimento absoluto no rosto do pai deve tê-lo feito entender .É a única explicação possível. O texto bíblico em geral é suficientemente honesto para não precisarmos imaginar que algum esperneio de Isaac teria sido omitido. Não houve. Como Abrahão aceitou a ordem divina, Isaac aceitou a ordem paterna, e deixou-se levar ao sacrifício. "Imperativo categórico", diria o poeta. "Uma causa maior que a vida", diria o herói, e também o mártir.

A Abrahão não deve ter escapada a idéia de que, com esse Deus tão diferente dos outros, que não tinha forma, nem nome, nem lugar , ele estava deflagrando uma revolução. Não uma revolução política, mas uma revolução na própria identidade do humano. Uma revolução não ao nível do poder, mas ao nível do ser. Abrahão estava inventando a capacidade do ser humano de se preocupar com seus semelhantes, e não apenas com seus próprios desejos. Não é muito absurdo dizer que Abrahão estava inventando o amor, se imaginarmos que até então houvesse apenas desejo e posse. Amor, aqui, no sentido da capacidade de se sacrificar pelo outro, de suportar uma frustração em benefício do outro, de encolher o próprio desejo para que o outro usufrua *. Ele fez isso com o sobrinho Lot, com os aliados do sobrinho Lot, com os inimigos do sobrinho Lot, sobrinho esse que, sendo o seu único aliado natural num território totalmente estranho e hostil, o havia abandonado sem pestanejar para cuidar da própria vida. Ele fez isso com Sara, e com Hagar, e com os anjos que lhe apareceram disfarçados de simples viajantes.( Em tempo: Para os que não sabem, Abrahão nada tinha de "bonzinho". Não é disto que se trata aqui. Favor não confundir.) Pois Abrahão não foi apenas generoso. Abrahão, pelo que se pode deduzir das narrativas sobre ele, realmente amava. Não há nada na Torá sobre isso, antes de Abrahão. Até então temos trogloditas ferozes, brutais, autocentrados, uns mais outros menos. e ao tempo de Abrahão, e depois dele, continuaram a existir os trogloditas. Feras falante, ou então gado falante. Com Noé já tinha havido uma introdução ao tema. Por isso ele é chamado de "o justo". Mas Abrahão estabeleceu definitivamente essa nova modalidade de ser humano: o ser que ama, no sentido psicologicamente mais preciso do termo. Aquilo que Hilel resume quase dois mil anos depois , na fórmula mínima: "Não faças a teu semelhante o que detestas que façam a ti, esta é toda a Torá. ( O resto é a explicação disto, vá e estude)". Pois Hilel já sabia que a fórmula máxima - "Amarás teu semelhante como a ti mesmo"- não era possível: era pedir demais. Para Abrahão não era demais. Com isso ele fundou uma nova consciência, um novo comportamento, uma nova nação.

Não me custa imaginar que, para demonstrar a si mesmo sua fé absoluta no novo modo de ser humano que lhe ocorrera inaugurar, Abrahão se dispusesse a perder sua "propriedade" mais valiosa: seu herdeiro, o continuador natural ( e único) de sua obra. Esta é uma hipótese psicológica, bem sei, e não religiosa ou mística. Mas eu sou psicólogo, e não religioso ou místico. No entanto, não posso deixar de tremer ante a idéia de que a figura de Abrahão - um vetusto patriarca que viveu numa era que atualmente com certeza chamaríamos de sangrenta e selvagem - percebeu à perfeição essa coisa que , hoje, a psicanálise mais refinada chama de Amor, e percebeu não só a coisa, como a sua total a absoluta importância. Talvez por isso ( não conheço a explicação dos eruditos) lemos O Sacrifício de Isaac em Rosh Hashaná. Para que, no início de nosso calendário, esteja o início de nossa identidade.
Por isso, a meus olhos, o sacrifício foi de Abrahão, não de Isaac. Abrahão, por seu amor, dispôs-se a matar. Esta é a minha interpretação: para provar que o Deus no qual acreditava era mesmo digno de fé, Abrahão dispôs-se a infligir a si mesmo o pior sacrifício que lhe foi possível imaginar. Para demonstrar o valor supremo desse Deus, um Deus completamente diferente de tudo que a humanidade havia imaginado até então, um Deus que propunha coisas inteiramente diferentes do que os deuses haviam proposto até então, um Deus que lhe possibilitava ver no ser humano coisas inteiramente diferentes do que tinham sido possíveis até então, Abrahão, em nome desse valor, fonte desses novos valores, imaginou-se destruindo o que de mais valiosos havia em seu poder: o filho que iria herdá-lo e, com isso, eternizá-lo. Essa suprema prova era necessária. Se não valesse a pena matar Isaac em nome de tudo que ele e o seu Deus haviam fundado, nada disso teria acontecido: Abrahão não teria sido mais que os outros chefes de clã de seu tempo, com sua pequena divindade doméstica e portátil, e nós, se de qualquer maneira estivéssemos hoje aqui, por uma determinação inescapável da mãe-natureza, seríamos outras pessoas, teríamos outra história, viveríamos num outro mundo.
O sacrifício de Abrahão nos impôs um padrão: por esse Deus a vale a pena matar um filho. Ao longo da História, os judeus aceitaram essa herança deixando-se sempre matar, se a alternativa era renegar sua herança. Por isso, o povo judeu manteve-se vivo, enquanto tantas outras identidades nacionais pereceram, porque seus portadores preferiram jogá-las fora e continuar vivos. Não somos melhores que os outros povos. Apenas partimos da premissa de que os nossos valores são melhores do que nós mesmos. Ou seria melhor dizer "partíamos"?
Iom Kipur é parte integrante do Rosh Hashaná, o Início do Ano. No Início do Ano, somos convidados a recordar o Início de nossa existência como Nação, lendo e relendo a história do Sacrifício de Abrahão, a história daquela que acreditou que valia a pena morrer duplamente ( não podemos imaginar que Abrahão houvesse continuado vivo se a tarefa auto-imposta tivesse chegado ao fim) em nome do princípio de que você não vale menos que eu, mesmo que eu seja mais forte. Em Iom Kipur somos convidados a sentir culpa por não conseguirmos aceitar esse princípio tanto quanto nós mesmos desejamos. Em Iom Kipur nos sentimos mal por não sermos bons. A nossa religião não é idealista. Ela não acredita que o homem possa um dia se tornar inteiramente bom: não somo convidados a abdicar de nossa "humanidade". Ela apenas pede que, com as explicações que ela nos oferece para a frase de Hilel, nos tornemos cada vez menos maus. Ela nos pede consciência: Consciência de nós mesmos e consciência do outro. A consciência sempre dói, mesmo quando não está pesada. Em Iom Kipur ela dói com intensidade máxima. Com isso, tomamos consciência da nossa consciência, e com isso ela cresce um pouco. Com isso, nós crescemos um pouco. Nos tornamos um pouco menos trogloditas. Nos tornamos um pouco mais descendentes de Abrahão, o homem que sabia sacrificar seus interesses em benefício de seus semelhantes.

Shaná tová



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