KASH'RUT - CONTROLE OU PRÁTICA

Rabino Nilton Bonder


 

 

Há algum tempo inauguramos uma feira de produtos sem agro-tóxicos como forma de afirmar nossa crença numa observância viva das leis dietéticas judaicas. É claro que kash'rut continua sendo a coletânea de leis cuja função além de ritual foi também, em algum momento, uma preocupação com a saúde. Sabemos disto não pelo exemplo que comumente vemos utilizado para demonstrar este ponto que a a "carne de porco". Apesar desta carne transmitir doenças, ela não é privilegiada como uma proibição na Israel antiga. Ela se adequa às prescrições que proíbem seu consumo, mas sua fama só surgiu na Europa onde era uma fonte primária de alimentação. Foi o fato de ser um elemento de segregação entre os judeus e a população em geral que lhe conferiu a fama.

Sabemos, no entanto, da preocupação com a saúde na kash'rut por conta de alguns detalhes, tal como o desejo de evitar-se a ingestão de sangue animal. A crença de que o sangue continha a alma e a personalidade do animal fazia temer-se que por sua ingestão um indivíduo adquirisse suas características. Havia uma preocupação, por assim dizer, que não era ritualística somente, mas visava preservar a integridade do corpo-espírito, ou seja, da saúde.

Esta preocupação parece ter se perdido com o tempo. Os rabinos a atualizaram, mas seu conhecimento "científico" diferia muito pouco daquele disponível em tempos bíblicos. A evolução, no entanto, nos últimos séculos foi impressionante. E a pergunta vale: Não deveríamos estar atualizando a kash'rut?

Acredito que sim. Há um importante movimento nos Estados Unidos conhecido como Eco-kash'rut que se propõe ampliar as leis dietéticas judaicas de sorte a proibir, por exemplo, a ingestão de substancias cancerígenas, híbridos transgênicos e agro-tóxicos.

Mas não acho que esta atualização deva parar por aí. A kash'rut tem se tornado mais e mais um elemento de controle e segregação deliberado. Comer diferenciado tem "permitido" ao judeu observante não se misturar com outros povos. E isto era muito interessante nos tempos em que a nação judaica se achava ameaçada pelas culturas vizinhas. Hoje, para as comunidades fora de Israel, é necessária uma tradição dietética que preserve nossa identidade, mas que não seja nunca um mecanismo para a segregação.

Não acho que as pessoas devam se privar de comer na casa de amigos judeus ou não-judeus. Não acho que devam se privar de comer em restaurantes e viver uma vida distanciada da sociedade da qual fazem parte. Acredito que preservar a tradição e não consumir qualquer produto proibido, mantendo as leis de não se misturar leite e carne, são fundamentais para esta identidade. Mas a própria identidade enfraquece quando usada para um comportamento defendido e inseguro. Se a kash'rut serve para este fim então ela carrega algo de anacrônico. Um anacronismo que é culpa nossa - desta e de algumas gerações do passado.

Os açougues são tantas vezes mal cuidados e insalubres. Os produtos que tentam imitar produtos de leite ou os que tentam imitar carne (os "elevadores" de shabat da kashrut) são tão artificiais e nocivos à saúde, mas possuem selos que garantidos por supervisão rabínica. Não há qualquer olhar de discernimento além do compromisso da mitsvá que me pergunto se a observamos corretamente. Estamos à espera de restaurantes e lojas de produtos kasher que além de seguir a bula das recomendações rabínicas zelem pela saúde e limpeza de seus produtos. Infelizmente, os rabinos de hoje não tem a mesma preocupação como os do passado para que os alimentos kasher representem o mais cuidadoso processo disponível para ofertar alimentos próprios ao consumo. Há algo não muito kasher no cuidado com a kash'rut e com a exploração econômica que dela se faz.

Outra pergunta importante é se estamos fazendo uso da kash'rut como instrumento para ampliar "controle". Há o perigo de idolatrarmos a forma perdendo contato com seu conteúdo. Onde estão os profetas do passado que não denunciam este risco? Para muitos, a kash'rut se tornou um vício de eleição. Vejo às vezes em aviões um certo orgulho no olhar daqueles que se servem de refeições kasher. São diferentes não só porque o são, mas se alimentam desta diferença com um prazer que não parece em si muito kasher. Já ouvi falar de pessoas nos Estados Unidos que praticam um "Treif Day", um dia em que se propõem desrespeitar as leis dietéticas propositalmente como uma prática para não se sentirem tão orgulhosas e virtuosas. Não devemos transformar nossos hábitos em formas hipócritas para nos sentirmos mais puros do que os outros.

Será que estamos fazendo uso da kash'rut como um braço de nossas patologias e dificuldades como povo? É uma importante pergunta. Gostaria que ampliássemos nossas discussões sobre Kash'rut para além das tecnicalidades das leis e que lhe ofertássemos a seriedade, o respeito e a sacralidade que desde tempos ancestrais merece.

Trazer discernimento à prática da kashrut é fundamental. Ela tomou juntamente com o shabat, características eminentemente de compromissos. E se parece tolo aos compromissados que se queira mais discernimento sobre as práticas de descanso e de alimentar-se de forma sagrada que não se esqueçam de uma das belezas maiores do judaísmo.

Podemos dizer que há sempre um elemento subversivo em meio a tudo que parece absoluto e dogmático no judaísmo. As leis de proibições de trabalho do shabat se sustentam por um fio de cabelo (dizem os sábios); a figura do Messias possui um pedigree familiar bastante irregular; e mesmo nossa noção de "eleição" tem que se sustentar de uma origem comum com todos os outros povos através de Adão e Eva.

A kashrut, no entanto, traz em si uma santa dúvida. Nossas cozinhas separadas para leite e carne, nossos talheres separados e nossas regras para o intervalo de comer produtos de carne e leite, tudo isto se baseia no mandamento de "não cozinharás o cabrito (be-chalav imo) no leite de sua mãe" (Êxodo 23:19 e 34:26). Porém esta vocalização de CH-L-V como sendo chalav já foi posta em dúvida por importantes artigos e estudiosos. É que a Torá não é vocalizada e faria até mais sentido ler-se be-chelev imo, ou seja, na gordura de sua mãe. Não é claro que as pessoas usassem o leite para cozer da mesma forma que usavam gordura animal para faze-lo.

Que os compromissos se sustentem por fios de cabelo não é problema, talvez seja esta a fonte de beleza deste incrível telefone-sem-fio que é a linguagem. Mas o discernimento inerente no compromisso, este não pode existir seguro por fios de cabelo.

Preservar a linguagem junto com as idéias é uma arte difícil em nossos tempos. Hoje as linguagens criam suas próprias idéias e as idéias suas próprias linguagens. Talvez não seja por acaso que o verbo que melhor expressa o cumprir das mitsvot seja "observar". Há algo de contemplativo na missão de juntar compromissos e discernimentos.

   
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