O ABORTO NA LEI JUDAICA

RACHEL BIALE


 

 

A lei judaica ( halachá) não tem uma posição única e coerente em relação ao aborto. Ela apresenta uma série de opiniões centrais, as quais desenvolvidas até a sua conclusão lógica, levam a uma gama de possíveis decisões legais sobre o aborto e a contradições internas.

O aborto aparece na legislação bíblica somente no caso de perda acidental do feto. "Quando dois homens brigam e um deles empurra uma mulher grávida e isto resulta num aborto acidental, mas nenhum outro dano ocorre, o perpetrador será multado em tanto quanto o marido possa conseguir dele " ( Êxodo 21:22) . O aborto induzido acidentalmente é tratado como uma questão civil e o marido é compensado pela perda da progenia ( uma vez que , segundo a lei bíblica , todos os "produtos " de sua mulher são se sua propriedade ). Se, no entanto, "outro dano" ocorre, isto é , a mulher é morta ou ferida , "a pena será vida por vida"( ibid ). A destruição de um feto não é considerada um crime capital e, portanto, concluem fontes posteriores, o feto não é considerado uma pessoa viva. Na verdade, o feto é definido como parte do corpo da mãe : "ubar ierech imo"( "o feto é <como> a coxa de sua mãe", Hulim 58a, Gittin 23b ).

A lei judaica não tem uma posição única e coerente em relação ao aborto.

O feto não tem direitos independentes e pode ser destruído para salvar a vida da mãe, até mesmo na hora do parto: "se a mulher está tendo dificuldade no parto, deve-se cortar o feto dentro dela e retirar parte por parte porque sua vida tem precedência sobre a vida do feto. Uma vez que sua parte maior tenha emergido, não a toque porque não se pode por de lado uma vida pela outra"( mishná Oholot 7:6 ). Portanto, o feto se torna uma pessoa independente somente quando sua cabeça ou a maior parte do seu corpo tenha emergido ( Sanedrim 72b ). De fato, o recém nascido não é considerado completamente viável até 30 dias após o seu nascimento e sua morte antes dos 30 dias não recebe o mesmo processo de luto que as outras mortes.

Entretanto, o feto é valorizado como uma vida em potencial e, assim, é permitido violar outras leis de modo a salvar sua vida, como, por exemplo, carregar uma faca no Shabat para operar e ajudar num parto ( Ioma 85b).

Conseqüentemente, até mesmo as autoridades haláchicas que baseiam sua decisão no princípio de que o feto não é uma pessoa permitem o aborto somente nas circunstâncias mais graves.

Na verdade , a maior parte das autoridades haláchicas permitem o aborto somente para salvar a vida da mãe . Eles seguem, de um modo ou de outro argumento de Maimônides de que o feto é um perseguidor ( rodef) o qual, como um assassino perseguindo sua vítima , pode ser morto para salvar a vida do perseguido. "Assim, os Sábios estabeleceram que quando a mulher está tendo dificuldade no parto , pode-se desmembrar a criança dentro de seu ventre, tanto por drogas quanto por cirurgia , porque ele é um perseguidor tentando matá-la "( Mishinei Torá, Ilchot Rotzeach u-Shmirat Nefesh 1:9). A decisão de Maimônedes de que o feto é um "perseguidor " implicitamente solapa o argumento de que o feto não é uma pessoa. Em outras palavras, se a única razão pela qual o feto pode ser destruído é a de que ele é um perseguidor, a implicação é a de que ele pode ser considerado uma pessoa . Embora Maimônides não tenha chegado explicitamnete a esta conclusão , autoridades posteriores o fizeram. Rabi Raim Soleveitchik utiliza este argumento de um modo muito mais radical que as outras autoridades haláchicas quando afirma que: ' A razão para a opinião de Maimônides aqui ... é a de que ele acrdeditava que o fweto cai na categoria geral de pikuach nefesh <salvar uma vida>, uma vez que o feto também é considerado uma nefesh e não é posto de lado pela vida dos outros ( Chidushei Rabi Chaim Soloveitchik a Mishnei , Tora.,Ilchot Rotzeach , 1:9) Seja como for, se a pessoa aceita a posição de Maimônides ou a talmúdica em relação ao status do feto, o aborto é permitido - e exigido - para salvar a vida da mãe. Além de permitir o aborto para salvar a vida da mãe, o Talmud cita outra situação onde o aborto é permitido : "Se uma mulher vai ser executada, não se espera até que ela dê à luz... Deve-se atingi-la no ventre de modo que a criança possa morrer primeiro , evitando que ela fique desgraçada"( Arachin 7a-b).

O feto não tem direito independente ( mas) é valorizado como uma vida em potencial

Portanto, a dignidade de uma mulher condenada tem precedência sobre a vida do feto, e também a angústia mental que ela experimentaria se fosse esperar pela execução para completar a gravidez. A implicação desta decisão, na opinião de autoridades legais mais permissivas, é a de que o aborto pode ser ativamente buscado e induzido para salvar a mulher de um grande sofrimento mesmo que este sofrimento seja apenas psicológico .

Assim, Jacob Emden, um halachista do século XVIII, permitiu o aborto a uma mulher que havia concebido uma criança através de adultério, por causa de sua "grande necessidade", quer dizer, sua angústia "só de pensar em dar à luz um manzer < bastardo>" (Sheélat Iaavetz No.43). Entretanto , diferente de Emden, a maioria dos halachistas- até mesmo os mais "lenientes"- permitem o aborto somente quando há um perigo físico ( e não psicológico ) para a mãe . Bem Zion Uziel,por exemplo, rabino-chefe ashkenazi de Israel nos anos 50, permitiu o aborto no caso onde a mulher grávida ficaria surda se não fizesse o aborto ( Mishpetei Uziel, Oshen Mishpat 3:56).

Assim, uma minoria de halachistas segue o axemplo de Emden de permitir o aborto para evitar um dano psicológico à mãe. Dentre os halachistas mais contemporâneos, o Rabi Ichiel Jacob Weinberg da Suíça permitiu o aborto de um feto de uma mulher contaminada com rubéola e o Rabi Eliezer Waldenberg em Israel legislou que um feto com Tai-sachs pode ser abortado. Nenhum dos dois justificou sua decisão com base no possível sofrimento do bebê, um argumento halachicamente aceito, uma vez que não existe permissão haláchica na eutanásia baseada na "qualidade de vida". Ao invés disso, eles basearam suas decisões na angústia da mãe lidando com a perspectiva de estar carregando uma criança fatalmente doente ou deformada, porque , como argumenta Walenberg, "o sofrimento psicológico é, muitas vezes, maior que o sofrimento da carne"( Responsa Tzitz Eliezer, Parte 13,No 102).

Mesmo que um julgamento ético sem ambigüidade pudesse ser feito contra o aborto, a falta de consenso público e a proibição contra se colocar em risco a vida de uma pessoa levantariam problemas haláchicos significativos.

Em resumo, a halachá afirma claramente que o feto não é uma pessoa, não apenas até o fim do segundo trimestre de gravidez ( N.T.: prazo para a efetuação do aborto legal nos Estados Unidos) mas até o próprio momento do parto. Entretanto, o princípio de proteção a uma vida em potencial e a justificação do aborto com base na idéia de que o feto é um "perseguidor" limitam mesmo as autoridades haláchicas mais lenientes a sancionar o aborto somente em casos de grave ameaça física ou psicológica para a mãe.

Permanece a questão de como a discussão haláchica de aborto se relaciona com as questões constitucionais levantadas por Roe v. Wade ( N.T.: caso cuja resolução jurídica marcou a legalização do aborto nos Estados Unidos). Grande parte da discussão de Roe v. Wade focaliza a questão de se o aborto deveria ser imune da interferência legislativa com base nos direito de privacidade e liberdade individual. A halachá não adere exatamente às categorias constitucionais de privacidade e liberdade individual, mas algumas analogias são evidentes . Uma das "metaleis " fundamentais da halachá é : "Não fazemos uma lei ( quezeira) a qual a maioria da comunidade não possa obedecer "( Baba Kama 79b). Na verdade um dos principais argumentos "pragmáticos" a favor do aborto legal tem sido que a maioria das mulheres que buscam o aborto não se deteriam por causa de uma proibição e sim lançariam mão de um aborto ilegal. Tais abortos forçam as mulheres a colocar suas vidas em perigo e colocar uma vida em perigo é proibido pela halachá. Deve-se violar qualquer mandamento para salvar a vida de uma pessoa, à exceção das proibições contra assassinato, idolatria e relações sexuais ilícitas. Portanto, mesmo que um argumento ético sem ambiqüidade pudesse ser feito contra o aborto, a falta de consenso público e a proibição contra se colocar em risco a vida de uma pessoa levantariam problemas haláchicos significativos.

Permanece a questão de como a discussão haláchica de aborto se relaciona com... a questão de se o aborto deveria ser imune de interferência legislativa com base nos direitos de privacidade e liberdade individual.

A halachá também pode estar deixando subentendido que a mulher tem o direito de determinar seu próprio destino e o futuro de sua gravidez quando insiste em isentar as mulheres do dever legal de procriação. Enquanto que os homens sã vinculados à mitzvá (mandamento ) de procriação baseada no Gênesis 1:28 ("frutificai e multiplicai") e Gênesis 9:7 ( bênção/mandamento de procriação a Noé e seus filhos após o dilúvio), os rabinos se empenharam em acrobacias hemenêuticas para fazer com que as mulheres fossem isentas desta obrigação (levamot 65b). Embora o rationale exato para esta isenção seja apenas aludido, fica claro que os Rabinos sentiram necessidade de não exigir que as mulheres fizessem algo que "colocasse suas vidas em xeque". Os Rabinos estavam preocupados principalmente com os perigos físicos do parto, mas também estavam conscientes das dimensões emocional e social : de como as vidas das mulheres eram dedicadas e determinadas pelo parto.

A determinação dos Rabinos em isentar as mulheres da obrigação de procriar deixou uma abertura haláchica significativa para a prática da contracepção (levamot 12b). Talvez o fato de que a declaração talmúdica em relação à contracepção seja descritiva e não prescritiva ( o que levou a muita controvérsia em julgamentos pós-talmúdicos sobre a contracepção), tenha sido de propósito. A ssim como os Rabinos intencionalmente se abstiveram de adotar leis prescritivas em relação à gravidez e o nascimento, também se abstiveram de oferecer tais julgamentos sobre a concepção e o parto. Assim, podemos apontar em justificativas haláchicas para o argumento de que o estado ou qualquer outra autoridade legal não deve legislar naquelas áreas que exigem que a mulher coloque sua vida em perigo.

Rachel Biale é a autora de Women and Jewish Law (Schocken Books,1984). Ela é assistente social em exercício em Berkeley, Califórnia.

 

 
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