O BEM COMUM COMO MAIOR VALOR SOCIAL outras palavras.net | 10.01.2013 e ao |
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Entrevista a Inês Castilho | Imagem: Jac Depczyk Disponível em: http://www.outraspalavras.net/2013/01/10/o-bem-comum-como-maior-valor-social/comment-page-1/ "Estamos precisando da multiplicação dos pães",
sustenta esse rabino que vive no Rio de Janeiro, autor de vários
livros e uma peça teatral, A Alma Imoral, de grande sucesso. Não
como a reprodução infindável de carros, tevês
e microondas - mas sim como o desejo de criar e a capacidade de usufruir
de bens coletivos. Imersos em um capitalismo globalizado que transformou o dinheiro no maior valor individual, e o crescimento econômico no principal objetivo político, é de nossos corações e mentes que se irradia o desequilíbrio manifestado na natureza - lembra o autor de "Ter ou não ter, eis a questão - A sabedoria do consumo". No centro, a questão do individualismo: o sistema que sacralizou o consumo e alimenta a desigualdade não tem como oferecer aos 7 bilhões de habitantes do planeta os objetos de desejo que criou, e oferece insistentemente aos nossos olhos. "Se todas as benesses que podemos imaginar conseguir na vida estão no campo individual, vamos continuar querendo consumir cada vez mais. Se não tivermos prazeres que não sejam obter, ter, possuir, em pouco tempo vamos nos descobrir muito pobres", alerta. Nilton Bonder - que participa, em março, da primeira Missão de Líderes Muçulmanos e Judeus das Américas, em Washington, nos EUA, em busca do "diálogo e cooperação como alternativa ao fanatismo e radicalismo" - recorda que as religiões já previam que esse modelo de poder individual é um modelo apocalíptico que, mais cedo ou mais tarde, levaria a humanidade à destruição. "No paradigma de hoje, estamos incluindo os cidadãos como indivíduos. Mas teremos de pensar em uma inclusão de cidadania que vise o bem coletivo", observa. Ressignificar o sentido da vida e do prazer, transformando a relação do ser humano consigo mesmo. Como, porém, fazer essa mudança sem perder os direitos que conquistamos? "Essa é uma questão civilizatória complexa: como desmontar a liberdade que foi conquistada pelo indivíduo sem que ela seja sufocada por um Estado que venha a intervir em nome de cataclismas ou da economia. Não conhecemos essa resposta, mas minha intuição diz que o ser humano talvez venha a viver um processo não muito suave." A grande esperança, para ele, reside nos jovens. "Em uma
cultura, como a nossa, sem lastro histórico de indignação,
só a juventude tem a capacidade de se insurgir pelo direito de
exercer a cidadania - até porque é quem tem mais a perder,
a longo prazo, com tudo de errado que esteja sendo cometido neste país."
A seguir, a entrevista. (I.C.) Penso que estamos muito aquém de ter uma massa politicamente consciente e ainda há muito por conquistar, embora tenhamos feito progressos nessa área. Alguns mecanismos já estão disponíveis a boa parte do povo, como o acesso à informação - um fenômeno planetário. Da classe C em diante tem a televisão a cabo, que acabou com a hegemonia de uma televisão sem nenhum tipo de reflexão. E os próprios eventos da política nacional - eventos traumáticos, escândalos como o impeachment de um presidente - capitalizam uma reflexão. O Ficha Limpa também significou um amadurecimento, esses movimentos têm um valor agregado informativo que vai além dos grupos mais prósperos. Mas ao mesmo tempo existem aspectos culturais que não favorecem a participação política. Não temos um histórico de indignação, as pessoas têm uma postura muito dócil - o que, em certos momentos, é percebido como um valor, a qualidade da tolerância, mas muitas vezes é uma falta, talvez histórica, de o povo saber que sua indignação pode ter um grande poder. Quais os meios que o jovem tem para atuar politicamente? O jovem é a grande esperança, sempre. Porque a indignação
não se manifesta necessariamente com a promoção de
atos ou distúrbios, a indignação é uma visão
política, dos direitos do cidadão, e é a juventude
que tem capacidade de melhorar esses índices de indignação.
As pessoas de mais idade têm uma tendência à acomodação,
elas carregam a cultura do país, o fardo do período da ditadura. No Congresso Nacional ainda vislumbramos autoridades que evocam esse
poder do período ditatorial, quando a autoridade era inquestionável
- um tom que perdura nas elites políticas do país. A juventude
tem essa capacidade de indignação e, mais importante, é
quem tem mais a perder, a longo prazo, com tudo de má qualidade
que esteja sendo feito no país. Então, tem um potencial
muito importante, principalmente em exigir programas responsáveis,
não baseados no imediatismo, mas de longo prazo. O senhor mencionou o Ficha Limpa. Algum outro movimento chamou sua
atenção, no Brasil ou fora dele, recentemente? A Primavera Árabe, apesar de estarmos tão longe, acaba
sendo uma inspiração. E agora temos mobilizações
nos EUA. Há uma certa abertura para a indignação,
nesse momento. Nas últimas semanas tivemos movimentos contra a
corrupção, que não têm uma agenda muito desenvolvida,
são mais para expressar a percepção de indignação. Mas a corrupção não é isolada, ela está
costurada às leis da política brasileira. Temos necessidade
de reformas nas leis que gerem a política. A capacidade do povo
brasileiro de enxergar as questões estruturais que impactam nosso
país, e se indignar com elas - se a gente conseguir isso, teremos
elevado nosso nível de questionamento político. E temos
o desejo de que haja reformas estruturais. Quais são essas reformas? Penso que elas começam desmontando bolsões de poder político.
Nas leis eleitorais, nas leis de distribuição de recursos,
temos práticas herdadas de construções políticas
do passado que pedem reformas. Hoje as pessoas têm noção
de que a sua economia não só é onerada por índices
como a inflação, por exemplo, mas também por impostos
ou pela falta de infraestrutura. Estamos caminhando para a identificação desses inimigos
públicos, que antes ficavam muito localizados no escândalo.
Hoje o que é escandaloso é o uso de recursos públicos
para atender agendas que são pessoais, de indivíduos ou
grupos políticos: três bilhões de reais distribuídos
em emendas no Congresso, num país com carência em todas as
áreas de infraestrutura. É um processo político que
todo mundo diz que entende, mas que provoca certa indignação.
Formas de corrupção construídas na própria
legitimidade das leis. É essa consciência e essa indignação
que seria muito importante de serem trazidas a um conhecimento maior.
Mas já avançamos na massa crítica que identifica
essas questões. Quais os temas que mobilizam a sociedade brasileira, a seu ver? Estamos imersos nesse neoliberalismo, um capitalismo globalizado que
nos achatou culturalmente, embora todos tenhamos peculiaridades. Hoje,
mais do que qualquer outra coisa, a economia é o valor. E isso
vai além da questão política - mesmo áreas
em que antes se tinha uma filiação, uma relação
com as raízes culturais, são totalmente sobrepassadas por
essa questão econômica. Na questão religiosa, por exemplo, muitas pessoas deixaram sua
religião de raiz, dos pais, avós etc., para aderir a religiões
que oferecem, além do discurso religioso, algum tipo de agremiação
e ajuda mútua, de promoção na área econômica.
Isso é presente até mesmo no Brasil, que tem raízes
religiosas profundas. Esse é o fundamento, também, da política:
os que são eleitos estão fundamentados na melhoria da área
econômica, e isso suplantou até mesmo o discurso da qualidade
de vida pela educação, pela saúde. É uma tendência
global. Todos os países que fazem parte da modernidade e que aderiam
a certas formas de comercialização, de economia mundial,
estão vivendo sob o impacto da soberania econômica. Isso me leva a pensar na questão do consumo. É o consumo que alavanca toda essa perspectiva. Consumir é
identificado imediatamente com qualidade. É interessante que a
gente pegue, nesse universo, modelos de países desenvolvidos -
os verdadeiros, não os de marketing. São os países
do norte europeu, que não são extremamente consumistas e
valorizam saúde, educação, segurança, cidadania
básica acima do consumo. Mas os emergentes, e mesmo a própria
Europa, hoje, fora os países nórdicos, aderiram a essa crença
de que é o consumo, o crescimento que vai produzir bem-estar. A liberdade ainda é uma bandeira? A liberdade é uma conquista que, penso, as pessoas não
tolerariam que fosse de qualquer maneira cerceada. É um dos alicerces
dessa civilização que estamos construindo. A mesma coisa
com a consciência ecológica, que vai ganhando força.
Temos avançado tanto nesse território - liberdade para as
mulheres, para os homossexuais, para as minorias religiosas. A liberdade
está muito presente, e não há percepção
de ameaça a essa questão, hoje. Bandeiras que há
20 anos ou 10 anos eram impactantes se consolidaram como conquistas. O senhor considera que as redes sociais têm um papel na mobilização
política? Elas ainda são um meio utilizado pelas classes mais abastadas,
não desenvolveram o potencial que podem ter. Mas estão se
tornando uma mídia que abrange cada vez mais a sociedade. São
um veículo extremante interessante, que derrubou certos modelos
de comunicação, como a antiga rádio, que era um grande
instrumento dos políticos no interior. Começa a existir
um outro parâmetro nas comunicações - e aí
o impacto é grande. Pensando em tudo isso, como o senhor imagina novas formas de ação
política? O Brasil não precisa mais de heróis. As pessoas amadureceram
para buscar lideranças, individuais ou partidárias, que
sejam realmente comprometidas com uma agenda de trabalho. Essa é
a grande "ficha limpa" que vamos realizar. A gente precisa de
pessoas que tenham um histórico de envolvimento com o trabalho
em suas vidas. A Marina Silva foi exemplo disso, ela alavancou uma votação
que não se imaginava. Havia ali um discurso que não dizia
"vou baixar 10 reais o preço de não sei o quê,
tirar 50 centavos do transporte público". Não havia
promessa, mas uma pessoa que esboçava inclusive suas limitações.
Esse é o personagem cada vez mais buscado pelas pessoas. No Nordeste também tivemos políticos bem votados, que mostraram
certa seriedade e se afastaram desse lugar do populismo. Essas novas lideranças
só não emergem com mais força porque temos a corrupção
agindo. A corrupção é a quantidade de tempo que certos
partidos ou grupos conseguem na televisão - e que não é
construído com legitimidade real, de trabalho, mas em cima, de
novo, de corrupção dentro da legalidade. As luzes estão
se voltando para esses absurdos - e penso que eles serão extintos. Que valores sustentam essa consciência nascente? Valores importantes. Temos tido uma presença maior do trabalho
formal, deixando para trás um país que queria levar vantagem,
um país do jeitinho brasileiro, da informalidade. As pessoas estão
pagando impostos, participando de toda essa estrutura cívica que
é o contrato social. O trabalho hoje é um valor no Brasil,
um valor importante, que leva as pessoas a buscar economizar, a vislumbrar
uma estratégia em suas vidas. Diria que o valor do trabalho é
uma espécie de autovalor, a inclusão das pessoas na cidadania. A formalização do trabalho também tira as pessoas
de certa clandestinidade, e faz com que elas passem a valorizar a honestidade.
Mais brasileiros podem ser honestos, hoje, e os honestos demandam mais
honestidade. Penso que essa é uma das grandes mudanças que
têm acontecido: mais pessoas vivendo o valor da honestidade e fazendo
essa demanda por honestidade. Pensando no futuro, como o senhor vê as novas gerações
convivendo em um planeta tão pequeno? Vamos precisar de muita, muita maturidade. Porque o desequilíbrio
que a gente aponta na natureza, no clima, esse desequilíbrio é
estrutural nosso. No centro está a questão do consumo, da
riqueza. Não sabemos lidar com a riqueza, estamos deslumbrados.
É também um mundo muito individualista. Fomos para um caminho
que economicamente se mostrou mais viável, mais eficiente, mas
há um paradoxo nessa eficiência. Estou falando de um capitalismo que não conseguirá, a médio
prazo, produzir qualidade de vida para todo o planeta - se todos formos
ter um carrinho e todos os objetos que são hoje apresentados como
sonho de consumo. Talvez até pudéssemos ter esses objetos,
mas veríamos o surgimento de problemas muito graves, climáticos
e de qualidade do ar, da água. Falamos disso como se fosse virtual,
mas pouco a pouco essas coisas vão se mostrar reais. Vamos ter de conhecer algum tipo de processo mais coletivo, de interesse
coletivo. Nesse paradigma que vivemos hoje, estamos incluindo os cidadãos
como indivíduos - agora mais gente pode comprar, pode exercer a
cidadania. Mas a cidadania do indivíduo é um pouco como
aquela historinha: o sujeito sentado em um barquinho e começa a
fazer um buraco debaixo da sua cadeira. Quando as pessoas começam
a reclamar, "você está fazendo um buraco no barco",
ele diz "não se mete, estou fazendo debaixo do meu banco". É um pouco como funcionamos - estamos construindo o direito de
todos fazermos um buraco debaixo do nosso banco. Só que em algum
momento vamos perceber que isso não é um direito, e então
teremos de pensar uma inclusão de cidadania que vise o bem coletivo.
Isso vai ser muito complexo para todos nós, vai exigir maturidade
para fazer acertos que não sejam violentos. É uma questão
civilizatória muito complexa: como é que vamos desmontar
o direito que foi dado ao indivíduo, essa liberdade, sem que ela
seja sufocada por um Estado que venha a intervir em nome de cataclismas
ou da economia? Quando um país começa a falir, a tendência
é surgir um estado autoritário, porque alguém tem
que fazer o que tem de ser feito. Então, é muito complicado. Falando no longo prazo, eu usaria até mesmo uma imagem bíblica:
estamos precisando da multiplicação dos pães. O mundo
não vai poder ter um automóvel para cada um dos seus 7 bilhões
de habitantes, nem um microondas, nem uma televisão. Do ponto de
vista da economia, isso talvez seja um sonho maravilhoso, mas esse sonho
é inviável. Em algum momento vamos conhecer a inviabilização
desse projeto. A multiplicação dos pães não
é a multiplicação dos carros e dos microondas, mas
o conhecimento de qual riqueza nós dispomos e a capacidade de usufruir,
não do fato de ter eu um carro, mas sim de ganhar alguma qualidade
coletiva. Se todas as benesses que podemos imaginar conseguir na vida
estão no campo individual, vamos continuar querendo consumir cada
vez mais. Se não tivermos prazeres que não sejam obter,
ter, possuir; se não tivermos prazeres que são coletivos,
em pouco tempo vamos nos descobrir muito pobres. A multiplicação
dos pães não é no sentido exponencial, como se pode
imaginar. É a criação de outros valores, valores
que façam as pessoas terem como objeto de consumo coisas coletivas.
O que é coletivo modifica qualitativamente a relação
de consumo. A espiritualidade teria um papel nessa mudança? As religiões, de forma muito profética, mas obviamente
sem ter os instrumentos para saber quando isso aconteceria, anteciparam
esses eventos. O projeto de poder do homem, por mais que seja controlado
pela democracia, o levaria mais cedo ou mais tarde à destruição. As religiões antecipavam que esse modelo de poder individual é
um modelo apocalíptico. É um modelo que vai levar as pessoas
a um conflito muito grande, e elas então vão precisar de
uma nova consciência. Os profetas falavam em uma circuncisão
no coração. As pessoas teriam uma nova perspectiva do que
é a vida, do que é o prazer, de qual é o sentido
da vida, e essa seria uma mudança qualitativa na relação
que o ser humano tem consigo mesmo. Penso que essa é a grande mudança
que viveremos, lá na frente. Seremos uma população
consciente, que vai olhar para nós, que vivemos hoje, como seres
primitivos - e a ênfase no individualismo está no centro
desse primitivismo. Como fazer essa mudança sem perder os padrões de liberdade que a gente tem hoje? Sem promover nenhuma forma de repressão aos prazeres, às conquistas que o ser humano alcançou? Essa é a resposta que não conhecemos. Mas minha intuição diz que o ser humano talvez venha a viver um processo não muito suave. |