CORPO E ALMA EM DUELO
Debates entre moralidades e o disfarce das verdadeiras intenções
voltam à tona em nova publicação do rabino Nilton
Bonder
POR GUSTAVO RANIERI
http://www.revistadacultura.com.br:8090/revista/rc47/index2.asp?page=culturando
O debate acalorado entre as solicitações da alma e do corpo
é, de certa forma, uma constante no dia a dia do ser humano. O
que se deve ou não fazer, até que ponto transgredir leis
sociais e religiosas, por exemplo, são temas que encontram respostas
nas palavras do rabino Nilton Bonder. Primeiro em A alma imoral, de 2008,
best-seller que também virou espetáculo teatral protagonizado
por Clarice Niskier. Agora em Segundas intenções¸
publicação que é um contraponto ao primeiro título.
"Se a 'Alma' trazia as reivindicações sobre um corpo
que se acomoda, quais seriam a contrapartida e as demandas do 'Corpo'
sobre a alma?", indaga Bonder.
Como você lida com a recepção que A alma imoral
recebeu, e a influência exercida em muitas pessoas que o leram?
Tive sempre uma relação muito especial com A alma imoral.
Sabia que o livro tinha muito potencial, mas não tive qualquer
ansiedade para que encontrasse seu caminho. Mas pesa ouvir das pessoas
que elas mudaram de rumo, de emprego ou se separaram "por minha causa".
Sempre digo que tudo é por nossa própria causa.
Segundas intenções, no entanto, é um contraponto
com A alma imoral. É isso mesmo?
Achei que valeria a criação de um livro que falasse mais
diretamente pelo olhar do corpo. Aliás, a acusação
maior que a alma fazia ao corpo era que ele era moral e que se valia da
hipocrisia para dar conta de suas incoerências. Já o corpo
critica a alma por ela estar sempre exacerbando as segundas intenções.
Mas, se a alma tem essa ânsia de romper com as normas padrões,
o corpo consolida a "necessidade" de seguir boa parte das normas
sociais?
As normas e as leis surgiram de uma inteligência e de uma autenticidade.
Claro, muitas vezes elas fugiram a esse lugar e se fizeram ignorantes
e hipócritas. Mas, mais do que normas e leis, a maturidade e a
sabedoria estão aí para depor pelo corpo. A alma tem que
lhe dar escuta, porque ele não quer apenas desfazer seus sonhos,
mas emoldurá-los na realidade.
E como fica o debate da traição versus tradição
presente em A alma imoral?
Agora é a vez de a tradição se colocar. Mas é
importante lembrar que será a fala "imoral" da tradição.
Ela ensina sobre as segundas intenções, ou seja, como é
possível criar e recriar pela imaginação e pela racionalização
uma nudez que é a vestimenta da vestimenta. Essa nudez, no entanto,
é mais envergonhada do que a simples vestimenta.
De que maneira devemos construir a melhor relação entre
o que pede a alma e o corpo para uma vida plena?
Clarice termina a peça dizendo que as religiões devem buscar
seus homens, que as tradições têm que acomodar nossas
traições. Mas nossas traições também
devem acomodar nossos compromissos e nossos vínculos. Porque somos
livres não quando somos qualquer coisa, mas quando somos nós
mesmos.
LEIA A ENTREVISTA COMPLETA COM NILTON BONDER NA SEÇÃO
PRIMEIRAS PALAVRAS EM:
Nilton Bonder
Autor do best-seller A alma imoral, rabino expõe em novo livro
as reivindicações do corpo sobre a alma
Por Gustavo Ranieri
06/06/2011
Rabino e escritor, com mais de uma dezena de livros publicados, foi em
2008 com o lançamento de A alma imoral que Nilton Bonder, não
só se tornou um best-seller, como provocou na mente do leitor um
debate acalorado entre as solicitações da alma e do corpo
e como essa constante interage no dia a dia do ser humano. O que se deve
ou não fazer, até que ponto transgredir leis sociais e religiosas,
por exemplo, são temas que encontram respostas nas suas palavras.
O sucesso foi tamanho que a atriz Clarice Niskier resolveu adaptar e interpretar
nos palcos, em forma de monólogo, o espetáculo homônimo.
Agora Bonder lança Segundas intenções, publicação
que é um contraponto ao primeiro título. "Se a 'Alma'
trazia as reivindicações sobre um corpo que se acomoda,
quais seriam a contrapartida e as demandas do 'Corpo' sobre a alma?",
indaga. Enfim, promessa de novas discussões e reflexões
a cerca da existência e da necessidade de equilíbrio.
Entrevistado na edição de junho da Revista da Cultura,
a entrevista completa com Nilton Bonder pode ser conferida abaixo.
Como você lida com a recepção que A alma imoral
recebeu, e a influência exercida em muitas pessoas que o leram?
Tive sempre uma relação muito especial com A alma imoral.
Sabia que o livro tinha muito potencial, mas não tive qualquer
ansiedade para que encontrasse seu caminho. Tipo essas coisas que a gente
aceita os seus tempos, energias e deixa fluir. Foi sempre muito assim
com esse livro, que não imaginava chegar também sob a forma
de uma peça [monólogo homônimo adaptado e interpretado
por Clarice Niskier]. Então confesso que não fiquei muito
surpreso com a receptividade. Mas pesa ouvir das pessoas que elas mudaram
de rumo, de emprego ou se separaram "por minha causa". Sempre
digo que tudo é por nossa própria causa.
O plano inicial já era produzir após A alma imoral um
livro que fosse o seu contraponto?
Nunca imaginei como uma duologia. Na verdade, A alma imoral fala da
imoralidade como um ajuste para os adaptados e acomodados, assim como
para os rebeldes e inconformados. Ser imoral consigo mesmo é sempre
flertar com o que lhe desafia. Então ao escrever o livro falava
sobre uma gestão de vida que valia tanto para os mais ousados como
para os mais acanhados. No teatro, no entanto, Clarice Niskier faz a peça
sob o olhar da alma. Ou seja, o aspecto libertário pela rebeldia
fica mais evidenciado. No livro o libertário poderia vir de qualquer
lado. Ha uma dimensão também libertária em estabelecerem-se
vínculos, em compromissos e até em coibir-se. Fiquei achando
que valeria então a criação de um olhar que falasse
mais diretamente pelo olhar do corpo. Se a alma trazia as reivindicações
sobre um corpo que se acomoda de um lado de uma margem sem coragem de
atravessar seus mares, qual seria a contrapartida e as demandas do corpo
sobre a alma? Quis então estabelecer uma fala que trouxesse a tensão
que A alma imoral sempre quis produzir pela fala do corpo. Acredito em
tensão não como uma forma masoquista de nos manter tensos
no sentido da angústia e da apreensão, mas no sentido de
manter demandados, viris com a vida.
Então Segundas intenções é realmente um
contraponto com A alma imoral. É isso mesmo?
As demandas do corpo tinham que ganhar uma queixa. O que é que
a alma produz como um resíduo negativo pelo fato de ser afoita
por desafios? Aliás, a acusação maior que a alma
fazia ao corpo era que ele era moral e que se valia da hipocrisia para
dar conta de suas incoerências. Já o corpo critica a alma
por ela estar sempre exacerbando as segundas intenções.
O corpo vai fazer um discurso já mapeado pela tradição
espiritual que havia cunhado esse aspecto de nosso ser por um conceito
chamado de impulso ao mau. Este livro é uma tentativa de apresentar
a perturbadora coerência de certos argumentos que se originam no
discurso religioso e que colocam a alma em cheque. Não é
um desdizer da Alma imoral, mas um acentuar de sua tensão. E as
Segundas intenções são criadas justamente pela opção
de viver no imaginário, de construir possíveis novos cenários
para nossa existência e o perigo de trocarmos a existência
pela presença; o ser pela gestão de ser.
Quais são os pontos mais importantes desta sua nova publicação?
Neste livro trago conceitos que desafiam a alma tal como a ideia de que
a hipocrisia pode ser uma forma de ser mais verdadeiro, de que podemos
ser mais compassivos para conosco mesmos com certas formas de acomodação
e de que nem toda a nudez é transparência. Fala sobre a maturidade
de não sermos honestos, sobre os perigos da imaginação,
sobre o lugar dos compromissos e o valor dos lugares estreitos. Assim
como sobre o humanismo, a racionalização e sobre as limitações
do livre-arbítrio. No entanto, não falo isso de um ponto
de vista moral, mas com toda a imoralidade que isto deve provocar nos
espíritos mais libertinos. Essa tensão que emana da vida
e da consciência e não de valores é que se apresenta
tão perturbadora em Segundas intenções como o foi
em A alma imoral.
Se a alma é livre e transpõe fronteiras, agora no novo
livro o corpo tenta dominar as vontades da alma e diminuir o seu ritmo.
Como é isso?
Não sei se diminuir o ritmo, porque o que acontece nas esferas
interiores com as propostas "imorais" é que elas intensificam
a vida, mesmo quando resultando em contenções. Conter-se
como um ato de escolha pode ser tão mobilizador e autêntico
como ousar-se por caminhos desconhecidos. Até porque o que nos
é mais desconhecido está mais para o lado de dentro do que
fora. O que o livro apresenta é o personagem que habita dentro
de nís, o yetser-ha-rá, o impulso-moral-perverso, que defende
a suprema moralidade do controle. Esse personagem camaleônico que
surpreendentemente nos parece ser a própria identidade, o Eu, é
um impostor sempre pronto a evitar a verdadeira imoralidade. Essa imoralidade
que pode se dar em compaixão para com nossas limitações
ou no rompimento de padrões. Os muito alma e os muito corpo são
todos morais, e isso é chocante. O que ambos querem é eliminar
a tensão e acabam impotentes e incontinentes diante da vida.
Você não acha que, de alguma forma, as pessoas que estavam
extasiadas com o que leram em A alma imoral podem agora ficar confusas
ao lerem Segundas intenções?
Confusas seria um desastre. Ao contrário, podem despertar para
uma mais alta definição e nitidez desta questão.
Segundas Intenções amplia a imoralidade da A alma imoral.
Mas se as pessoas queriam encontrar soluções fáceis
e que não demandasse delas mais vida e lucidez, então elas
sim estavam confusas. Nesse livro há uma dimensão libertária
ainda maior que não aparece ao desavisado. Ele valoriza as intenções
mais do que o feito. Mas faz isso não no lugar do imaginário,
em que podemos por racionalização interferir e corromper
a realidade da maneira que bem entendermos. Ao contrário, as intenções
quando se revelam, desnudam o imaginário porque elas aparecem íntegras
antes do photoshop de nossa consciência entrar em ação.
E viver com essa realidade nos ajuda e reconhecer o verdadeiro ser que
nos habita. A moral é sempre querer maquiar este ser, é
não aceitá-lo porque na consciência ele é sempre
passível de retoques e aparências melhoradas.
Mas, se a alma tem essa ânsia de romper com as normas padrões,
o corpo consolida a "necessidade" de seguir boa parte das normas
sociais?
As normas e as leis surgiram de uma inteligência e de uma autenticidade.
Claro, muitas vezes elas fugiram a esse lugar e se fizeram ignorantes
e hipócritas. Mas, mais do que normas e leis, a maturidade e a
sabedoria estão aí para depor pelo corpo. A alma tem que
lhe dar escuta, porque ele não quer apenas desfazer seus sonhos,
mas emoldurá-los na realidade. E a realidade não é
a má noticia como a alma moral quer fazer passar. A realidade é
apenas uma continuidade do corpo, assim como a divindade é a extensão
da alma para além do personagem. Encostar nosso corpo no corpo
da realidade pode ser um roçar de muita sensualidade e vida. Para
a alma ser imortal ela tem que abraçar seu corpo mortal. E o livro
fala sobre a importância da moral para estabelecer vínculos
com a morte e a finitude. Porque estas são limitações
intrínsecas de nossa identidade e não querer acolhê-las,
por mais nus que fiquemos, revela nossa indumentária moral, nossa
condicionalidade controladora frente à vida.
E como fica o debate da traição versus tradição
presente em A alma imoral?
Agora é a vez de a tradição se colocar. Mas é
importante lembrar que será a fala "imoral" da tradição.
Ela ensina sobre as segundas intenções, ou seja, como é
possível criar e recriar pela imaginação e pela racionalização
uma nudez que é a vestimenta da vestimenta. Essa nudez, no entanto,
é mais envergonhada do que a simples vestimenta. E é assim
que a maioria de nós anda pela rua: pleno de falsa transparência
e autenticidade quando estamos totalmente envolvidos por conceitos criados
no imaginário, os quais redesenham a paisagem da vida para melhor
nos servir. Todos nós vivemos como se fossemos eternos. Da alma
traidora emana a certeza de poder atravessar qualquer mar que se interponha
aos nossos sonhos. A retórica da imortalidade da alma, que é
uma poética da sua imoralidade ao corpo, pode também fazer-se
uma ilusão diante da experiência do corpo. A maioria dos
traidores se acha imortal e para eles morrer é uma tremenda injustiça
- a maior das traições. Pois é disso que trata a
tradição. Meu filho, seu pai morreu, seu avô morreu,
seu bisavô morreu e você... Ancestralidade é morte,
é realidade e é nudez.
Mas enfim, ao ler estes dois livros, surge a conclusão clara
sobre qual é a função da "alma" e a função
do "corpo" na existência?
Somos tanto alma como corpo. Na verdade os dois não existem
a não ser em nossa experiência de vida. Tensionados eles
podem nos favorecer expondo uma estranha contradição - ter
presença ou existir. Quanto mais presentes (conscientes e imaginários)
menos existentes e vice-versa. Como não podemos abrir mão
de nenhuma das duas dimensões estabelecemos contratos entre alma
e corpo. Mas que sejam contratos imorais - que possamos pender ao corpo
quando a alma se mostra moral; e que possamos pender a alma quando o corpo
se mostra moral. Alma e corpo são nossos ajustes finos, nossa maneira
de nos sintonizar, de sincronizar o descompasso de existir e de ser presencial.
Sem maestria da imoralidade sobre o corpo e imoralidade sobre a alma,
ficamos sem leme, personagens de uma identidade impostora. Porque o humano
que é apenas alma ou apenas corpo é um ausente.
Por isso, o equilíbrio entre as ações da alma
e do corpo continua sendo primordial, correto?
Sim, não há nada mais humano do que este debate entre
alma e corpo. Porque não há nudez na natureza, apenas em
nossa consciência. Ou seja, a nudez que buscamos como reencontro
conosco estará sempre num lugar mental, imaginário e humano.
Quando no ápice de nossa lucidez de alma chegamos até a
nudez, despertamos para o fato de que não há nudez na natureza.
Então o corpo nos ajuda com suas informações e dicas.
O que a alma nos oferece em discernimento e autoconhecimento, o corpo
nos oferece em compromisso.
E de que maneira devemos construir a melhor relação
entre o que pede a alma e o corpo para uma vida plena?
Clarice termina a peça dizendo que as religiões devem
buscar seus homens, que as tradições têm que acomodar
nossas traições. Mas nossas traições também
devem acomodar nossos compromissos e nossos vínculos. Porque somos
livres não quando somos qualquer coisa, mas quando somos nós
mesmos. E "nós mesmos" não é um conceito
moldado nos laboratórios de nossa imaginação, um
conceito moral. Somos o que a verdade da vida nos faz e temos que abraçar
isto que não cabe na consciência. A má noticia é
que não há fim a esta busca e este refinamento. A boa noticia
é que fazer isso é o que chamamos humanamente de bem-estar.
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