O SAGRADO, O HUMANO E O PROFANO
KOL AGOSTO DE 2007


 

 

 

Rabino Nilton Bonder

A CJB realizará um shabat dedicado a um episódio complexo, repleto de nuances. Diz respeito a prostituição de mulheres judias no final no final do século XIX e na primeira metade do século XX, conhecidas como "polacas".

Nada diz tanto do humano quanto seus dois aspectos maiores: o sagrado e o profano. Qualquer tentativa de excluir uma destas características retratará qualquer coisa, menos o que é humano.

Shabat é o encontro entre o sagrado do dia de descanso e o profano dos dias da semana. Shabat é uma amostra daquilo que o ser humano imerso em sua condição profana consegue alcançar no território do sagrado. Simbolicamente este episódio das "polacas" expõe de forma comovente o esforço de integrar profano e sagrado mesmo diante de condições tão extremas. Revela assim aspectos profundamente humanos.

O episódio das "polacas" tem raízes na pobreza extrema de grande parcela da população judaica do Leste Europeu. Foram, acima de tudo, vítimas da miséria, da má fé, do aliciamento, da imigração, da falta de perspectiva e de tantos outros males que afligiram os judeus para além das perseguições religiosas e racistas.
Elas encontraram neste Brasil tão distante de suas casas e raízes, não o que a maioria dos imigrantes encontrou, ou seja, uma terra cheia de oportunidade e acolhimento. Para elas, imigrantes pobres na condição de mulheres e judias, o que aguardava era uma fragilidade que as deixou expostas a toda forma de abuso.

Prova maior de seu esforço pelo sagrado está em sua organização comunitária criada nos moldes do que de mais meritório existia na estrutura da coletividade judaica. Reflexo do berço religioso de muitas, fundaram uma sinagoga que lhes servia para os dias santos. Formaram um fundo de ajuda mútua, inspiradas na preocupação social judaica e estabeleceram também um cemitério judaico para que pudessem ser conduzidas a seu descanso final como judias. Tais preocupações com a benemerência e a preservação de sua identidade
representam o sagrado em dimensões tão marcantes quanto o profano que impactou a história da comunidade carioca.

Sem romantismos e sem prejulgamentos morais, queremos resgatar a luta dessas
mulheres. Para alguns a comunidade judaica agiu com preconceito para com elas, para outros tentou proteger seus descendentes e a si mesma daqueles que queriam fazer uso deste episódio para fins discriminatórios aos judeus.

A grande interdição judaica à prostituição não se refere à prática mundana da venda do próprio corpo. Está dirigida no texto do Shemá a todos os seres humanos e de forma ampla. "E não seguireis atrás dos sentimentos de teu coração nem da visão de teus olhos pelos quais vocês se prostituem...."

Nem na prostituta está o profano, nem no santo ou sábio está o sagrado. Em ambos habitam o humano e só os céus conhecem o que de mais recôndito há nos corações, quais desses se prostituem e em que nível.

Ao entrarmos na força gravitacional das Grandes Festas, quando autorizados por tribunais terrenos e celestes na noite do Kol Nidrei a rezar com toda a comunidade independente de seus erros e acertos, possa este shabat ser de resgate. Por um lado do legado pelo esforço ao sagrado das "polacas". Por outro, de uma
comunidade que abarca não só os seus prêmios Nobel, mas a totalidade de sua gente. Que cultua a memória não só das adversidades que vieram de fora, do outro, mas também daquelas que nasceram em meio a seu próprio mundo. Neste Kabalat Shabat especial seremos conduzidos por mulheres numa homenagem à luta que as judias vítimas do tráfico de mulheres no século passado empreenderam para não se dissociar de suas raízes judaicas.

NILTON BONDER é rabino e escritor