PERSONAGENS E IDENTIDADE


 

 
 

A festa de Purim é em si uma forma de rirmos de nós mesmos, de nosso personagem.

A famosa síntese das celebrações judaicas - queriam nos matar... não conseguiram.... vamos comer! - expõe um enredo recorrente muito grave.

Para além das experiências de violência do passado, há um custo bastante pesado em preservar-se uma memória persecutória e construída de personagens tão maniqueístas como o vilão e o mocinho. Para os judeus a disparidade de poder em relação aos adversários e a perversidade de muitos deles, acabou gerando este enredo tão caricato. Mas se nesse enredo há uma memória real, por outro lado, há também sombras constituídas de raiva e desconfiança que reforçam os mesmos estereótipos do qual os personagens foram vítimas. Tal como o "molestado" tem grandes tendências a ser um "molestador", nos vemos também diante das caricaturas torcendo para que coisas aconteçam com o vilão que, em essência, melhor se identificariam como métodos e comportamentos do próprio malvado. Essa perversa e sutil inversão de papéis é mais comum do que imaginamos, se constituindo talvez na verdadeira tragédia de toda a tragédia.

E esse é o valor sagrado de Purim no calendário judaico. Este caçoar de nossa própria memória através do artifício de saturar os personagens com características inverossímeis, se configura no truque que permite perder a lucidez entre quem é o virtuoso e quem é o execrável, quem é o bandido e quem é o vilão.

É desta loucura de Purim que emana terapeuticamente a lucidez que aproxima a tragédia da comédia. O deboche produz uma inversão que aproxima o ódio da paixão e coloca em cena o único protagonista capaz de contracenar à altura com a raiva - o riso.

Na verdade Purim sublinha que a verdadeira tragédia está na própria caracterização dos personagens, dando-lhes traços e feitios imutáveis que impossibilitam qualquer transformação. Ao contrário de Ki-Purim (Iom Kipur), do dia em que celebramos a capacidade de mudar, de podermos deixar de ser um único personagem e, ao anularmos éditos e fatalismos, livrar-nos da clausura de um único destino, de um único papel.

Purim é uma santa e malandra festa. No epicentro de seu riso está a tragédia dos personagens; de ficar para tempos messiânicos a descoberta de que entre bons e maus, só existe uma única identidade a cada ser humano: saber-se único, como qualquer outro!

Rabino Nilton Bonder