DEPOIS DE SHARON E ARAFAT

Rabino Nilton Bonder


 

 

O GLOBO - 1º CADERNO - OPINIÃO - 06/01/2006

O Um dos princípios da Cabala é que a “Árvore da Vida” é constituída por forças que se completam. Numa coluna se encontram as manifestações relativas à compaixão, na outra diametralmente oposta as relativas à severidade e ao julgamento. O que idealizamos como paz não é a ausência de severidade, mas sua harmonia com a compaixão.

O filme “Munique”, de Steven Spielberg, que começa a ser exibido, retrata os episódios das Olimpíadas de 72 quando terroristas palestinos assassinaram os desportistas da representação israelense. Presume-se que a então primeira-ministra Golda Meir teria autorizado ao Mossad assassinar todos os terroristas que haviam participado do atentado. O filme, em sua tentativa de imparcialidade, propõe uma equivalência moral entre as violências, o que tem particularmente incomodado a comunidade judaica. A mensagem do filme é que violência gera violência num encadeamento sem fim.

Mas desde a mais primitiva memória humana esta tem sido uma questão fundamental: como se reage à violência?

A compaixão e os “pombas” propõem a busca da tolerância e a diplomacia; os mais rígidos, os “falcões”, asseguram que sem o uso da força e da intransigência nada se consegue no mundo animal no qual estamos incluídos. E não faltam exemplos na História de tentativas malogradas de ambos os grupos impondo seu caminho à civilização. Os que não aprenderam a arte da guerra desapareceram e tiveram que ver sua construção tomada, usurpada e violada. Os que se dedicaram à arte da guerra descobriram que sempre surgirá um mais forte e que a truculência que outrora os protegeu em outro momento os faz vítimas.

Ambas as manifestações — compaixão e severidade — têm que ser contempladas para que exista o equilíbrio que experimentamos como paz. A paz não se faz de compaixão porque nos torna lenientes, complacentes e indulgentes. A paz não se faz também de rigor porque nos conduz à brutalidade e à atrocidade. Nem a lei e nem o amor isolados podem trazer os tempos em que as espadas se farão em arado. O próprio profeta evita transformar as espadas em flores. Os arados são uma forma de “rigor”, de força e suor, temperados pelo amor. E estes sempre serão os nossos instrumentos de construção — peças que harmonizem nossa natureza de força e gentileza.

Desse equilíbrio provém o nosso bem e uma vez que este se desestabilize, nos deparamos com um longo e custoso caminho até que algum processo de sintonia fina e sensibilidade o consiga restaurar.

O Oriente Médio é um exemplo clássico dessa questão humana tão antiga como a História. Lá a violência, o desequilíbrio, tornou-se parte da realidade e a busca pela paz não se conseguirá nem com as “pombas” nem com os “falcões”. Sem rigidez um dos povos desse litígio perecerá; só com rigidez os dois se verão mais e mais amaldiçoados. Sem compaixão mãe odiará mãe quando ninguém no mundo poderia melhor compreender uma à outra; só com a compaixão as legítimas aspirações não serão contempladas e se abrirá caminho a injustiças.

Por isso a esquerda ou a direita de Israel sozinhas não têm solução. Por isso Hamas ou a Autoridade Palestina sozinhos não têm solução. Sharon seja lá de que maneira se queira enxergá-lo é uma lembrança tanto deste desequilíbrio como também da única esperança possível. Um “falcão” — com as responsabilidades históricas que recaem sobre os “falcões” — fez uma guinada na direção pragmática de “baixar a bola” e reduzir o pêndulo da violência. Seu caminho para o centro não é apenas um legado político, mas uma luz para a possibilidade de maior equilíbrio e paz na região.

Se Hamas e Jihad Islâmica caminhassem no sentido de se fazerem entidades políticas, contendo a violência de sua violência de “falcões” extremados, encontrariam lugar na memória do mundo como contribuindo para uma vida melhor.

O mais terrível é que, infelizmente, em desequilíbrio há equivalência moral. Violência gera violência seja ela de que natureza for. Só em equilíbrio não existe equivalência moral e somente nessa condição o que faz a polícia é diferente do que faz o ladrão. Mas em desequilíbrio é idêntico. Esse equilíbrio é o nosso maior patrimônio e o sonho milenar daqueles que experimentaram o horror deste desequilíbrio.

Este é um momento importante de reflexão para a região e para o mundo. Sem os velhos estadistas, Sharon e Arafat, memória viva das violências, talvez ambos os povos possam acordar para o que tanto têm em comum — mais do que o desejo pela mesma terra, o luto e a percepção do custo imoral que ceifa de sentido e desnorteia a própria vida. Vida cuja busca maior é pelo equilíbrio entre compaixão e rigor.

Nilton Bonder

Rabino e escritor

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