CULPA, PERDÃO E IMPUNIDADE

Rabino Nilton Bonder


 

 

O GLOBO - 1º CADERNO - OPINIÃO - 14/10/2005

CULPA, PERDÃO E IMPUNIDADE

NILTON BONDER

O Dia do Perdão que acabou de passar representa a culminância da busca por responsabilidade e culpa. Isso porque o perdão é a etapa final de processos de culpa levados a bom termo.

Culpa sem perdão e perdão sem culpa são as raízes de todas as violências e respondem pelo desumano e pelo arbitrário. A culpa é o entendimento que a matriz de qualquer julgamento é sempre o autojulgamento. Porque quando absolvemos, na verdade, estamos nos justificando e quando condenamos estamos nos denunciando. O Dia do Perdão é uma contenda com a sombra de nossa consciência, com Satã, que só admite a culpa previamente perdoada e o julgamento do outro, como forma de evitar o seu próprio julgamento. Nesse dia não queremos prender o ladrão, mas quem está por detrás do ladrão. A verdadeira malícia, por definição, não comete os delitos, mas os projeta. Sua manha está em ser dissimulada e dificilmente se permitirá ser levada ao banco dos réus. Porque o malicioso tem tanta consciência de seu erro que não se permite à ingenuidade. E enquanto o criminoso sempre volta à cena do crime, o mentor nunca abandona a cena. Seu álibi é não se saber criminoso e desdenhar a culpa. Conta-se do rei que libertava o ladrão, mas prendia o comprador do furto. Questionado quanto à justiça de seu arbítrio ele apontava que a causa do roubo não é o ladrão, mas aqueles que aparentemente inocentes “lavam” o furto recolocando-o na economia. O mentor do roubo é quem o acolhe e nosso inconsciente conhece nossas culpas por receptação. Ele tem pleno conhecimento das improbidades que tornamos puras porque achamos que a passividade nunca poderá se fazer crime. Mas é mais insidioso aquele que engana a si do que aquele que engana aos outros. E assim é maior a contravenção do motorista que dá a propina do que o guarda corrupto. É mais ladrão quem dá o voto a Maluf sob a alegação de que “rouba, mas faz”, leia-se, “rouba, mas eu particularmente me privilegio”, do que ele próprio. É mais delinqüente quem compra a droga do que o traficante. É mais fraudulenta a antiga cúpula do PT que Roberto Jefferson. É mais corrompido o cidadão passivo que evoca a Economia saudável para legitimar que os fins justificam os meios, do que laranjas. Mais doloso o silêncio dos intelectuais do que o Marcos Valério. Mais manipuladores que Severino os deputados que o elegeram. Mais perversas as comissões que julgam ilegalidades que cometem regularmente do que os infratores. Mais ultrajantes os hábeas corpus para depor sem o compromisso com a verdade do que as mentiras em si. Menos delituoso o da Land-Rover que Delúbio, e ele que Genuíno, e ele que Dirceu, e ele que o presidente.

Quando a culpa é um instrumento para o aperfeiçoamento humano o fim dos julgamentos é o perdão e não a punição. A falta de punição não está nos tribunais, ela está na cultura que não sabe produzir culpa e perdão num equilíbrio cujo ideal seria mesmo a impunidade. Porque a consciência que precisa de punição não tem meios de produzir culpa e perdão. Temos que eleger representantes de nossa sociedade em todos os níveis que cultuem a culpa e o perdão. Quando não há culpa o justo só faz justiça para os seus; o bem-intencionado se torna ineficiente; o idealista se torna alienado; o ético se torna hipócrita; o cidadão se torna um mafioso.

As CPIs deveriam ser processos de “culpa” (C), “perdão” (P) e “impunidade” (I). De promover a culpa, de saber levá-la ao perdão e não ter como objetivo a punição, mas o profundo processo que nos liberta e aperfeiçoa. Mas o “C” de culpa dá lugar apenas a Constatação; o “P” de perdão se faz Pizza que representa os conchavos para não expor a culpa e o “I” responde pela Impotência de processos estéreis. Faz-se urgente o resgate em nossa cultura do senso de culpa e responsabilidade. Reprimir o ladrão em cada um de nós que passa ao largo das responsabilidades sociais de nada adiantará se não formos capazes de acuar o “receptor” em cada um de nós. Aquele que sem culpa, revela sua falta de princípios, e continua sendo a tão misteriosa origem do que alimenta os Valeriodutos. O que alimenta é nossa falta de culpa, talvez porque não nos ensinaram que o fim da culpa é o perdão e ainda achemos que o fim da culpa é a punição.

Nilton Bonder

Rabino e escritor

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