O IMPERDOÁVEL

Rabino Nilton Bonder
JORNAL O GLOBO - PRIMEIRO CADERNO - OPINIÃO - 09 de setembro de 2004


 

 

Aproxima-se o dia do Kipur, Dia do Perdão. Neste dia, dita a tradição, Deus se faz transcendente e ocupa seu Trono recôndito não estando mais entre nós. Estamos sós. Iom Kipur, o dia espiritual máximo do calendário hebraico, é um dia sem Deus. Como se dessa ausência e dessa solidão pudessem aflorar a mais visceral das humanidades e a mais ácida das consciências.

O rabino de Kotzk costumava afirmar que tudo no universo tem um propósito e uma faceta positiva. Por conta disso foi desafiado por um discípulo: “E o que há de positivo em um ateu?” Ele respondeu de imediato: “O ateu vê uma pessoa com fome e não tem para quem repassar a responsabilidade. Não pode dizer ‘que Deus te ajude’. Ou ele toma a si a situação ou não toma. Não há subterfúgios!” Sem usar Deus fica mais difícil ser reativo, passivo, conformado, dependente, apático, indiferente, submisso ou insensível. O Kipur, Dia do Perdão, nutre-se desse paradoxo: o dia da ausência é o dia de sua mais densa presença porque não podemos corromper Sua palavra e Sua vontade para avalizar nossas palavras e nossas vontades. Porque a ausência de Deus nos empossa e nos investe de parceria. E quanto mais parceiros, mais humanos nos fazemos.

O mundo de hoje está saturado de Deus. Não é o Deus dos profetas que um dia preencherá todos os corações, mas o Deus que sufoca o humano e que como um ídolo se torna repositório de todas as pequenas verdades dos homens. Verdades essas que excluem e destroem e que matam indiscriminadamente em guerras, ônibus, trens e agora também em escolas. O que seria dos homens se deixassem Deus de fora e assumissem o que fazem? Com certeza muitos enlouqueceriam e muitos se fariam mais humanos. É muito fácil fazer o que Deus quer e desvencilhar-se da responsabilidade do arbítrio do próprio indivíduo. Por isso todo homem-bomba que se explode termina com suas 70 virgens — com 70 consciências de lucidez a lhe dilacerar em culpa pela eternidade afora!

Deus foi talvez a descoberta mais refinada de nossa consciência e, ao mesmo tempo, a que mais sofrimento trouxe. Entende-se agora a dificuldade de não fazermos imagens e de não usarmos o Seu Nome em vão. O saber infelizmente nunca nos fez humildes, ao contrário, apenas o não saber produz esse efeito. E a maior das sabedorias nos levou à mais grosseira das soberbas ? conhecermos a vontade do Criador. O terrorismo no mundo de hoje vem de braços dados com esse saber. É um Deus que fala por causas escusas que são maiores do que a vida e por meio de um ódio que não é próprio de quem sofre já que é insensível ao sofrimento do outro.

Imperdoável ao terrorismo não é o mal que nos causa, mas o quanto nos faz mais maus. Como vítimas de abuso e de violência nos tornamos igualmente inoculados e transmissores de violência e abuso. Nossa revolta quer de imediato acionar o Nome de Deus e sua jurisprudência cósmica. Afastamo-nos todos de nossa humanidade e como vítimas estamos agora prontos a reagir em Nome de Deus. Cabe às religiões esvaziar o planeta de Deus e declarar a todos os seus fiéis que, em tempos como estes, aqueles que falam em nome de Deus são todos falsos profetas. Pior: são falsificações de si mesmos. São homens que não tomam a peito as suas ações e que são desprezíveis não só porque usam crianças como escudos humanos, mas acima de tudo porque usam Deus como escudo divino. Cabe a todos os que testemunham em si a revelação de Deus esvaziar o mundo de falas de Deus. Que os homens pensem e façam o que acharem que devem pensar e fazer. E que como homens sejam julgados por si e por outros.

O mal do mundo não é a infidelidade a Deus, mas a infidelidade ao humano e à vida. Isso porque, como dizia o mesmo rabino de Kotzk, tudo e todos têm o seu lugar próprio no mundo. E quando outro discípulo lhe perguntou: “E se todos têm o seu lugar, por que o mundo nos parece tão lotado?” Ele respondeu: “Porque cada um quer ocupar o lugar do outro.” Talvez essa seja a melhor maneira de definir o terrorismo, ou seja, como o ato de querer ocupar o lugar do outro. E a forma mais plena de simbolizar isso é querer ocupar o lugar do Outro — de Deus. Resta fazer um pedido estranho, próprio de tempos estranhos: que o ano possa ser de menos Deus! Menos Deus nas falas e de mais Deus no coração!


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