TSEDAKÁ como Justiça Social:
Um Componente Vital da Vida Religiosa

Célia Szterenfeld


 

 

Tenho observado, nos últimos anos, o crescente interesse da comunidade judaica do Rio pela experiência religiosa. Desde a vinda de reb Zalman ao Brasil em 1987 e a criação da CJB, cada vez mais judeus e judias buscam na prática religiosa uma renovação espiritual até então só possível aos que se dispusessem a abraçar a ortodoxia e mergulhar em seus ditames. As pessoas que buscam este caminho tendem a começar aprofundando seus conhecimentos e freqüentando os serviços na sinagoga, muitas vezes deixando de fora um terceiro eixo sem o qual este esforço se torna capenga: a aplicação de todo o estudo e elevação espiritual no mundo real, para além das necessidades individuais. A ação voltada para os interesses de outros, com intenção de praticar justiça social, traz uma experiência de bem-estar e completude ao espírito que é a própria essência do trabalho.

Esta experiência nos dá a chance de pensar sobre a vivência religiosa de uma forma nova, mas nos coloca uma questão: uma vez que muito do trabalho de justiça social parece com ativismo político ou assistencialismo, como tornar a ação social um compromisso religioso?

Precisamos nos perguntar, como já o fez Arthur Waskow: será que a política nos distrai do caminho profundo da espiritualidade – oração, meditação, contemplação, integridade? Ou será que a espiritualidade nos desvia dos assuntos sérios que nos cercam – fome, miséria, poluição, guerra? Ou será, ainda, que estes são nomes distintos para a mesma coisa e, neste caso, o que é esta "coisa" e por que lhe damos nomes diferentes?

Acredito que existe uma espiritualidade do indivíduo e uma espiritualidade da comunidade, do povo, da nação. Esta Segunda é a chamada política. E como nenhum ser humano vive fora da comunidade e nenhuma comunidade é composta de algo mais que indivíduos, não pode haver uma espiritualidade saudável de um que não inclua uma espiritualidade saudável do outro. Esta pode ser uma espiritualidade de sangue e terror, com o culto ao deus Moloch, ao qual sacrificamos o sangue de nossas crianças e o ar que garante nosso futuro. Ou pode ser uma espiritualidade de esperança e amor, em celebração ao Deus cujo Nome é Ehie Asher Ehie, "Serei o que Serei", IHVH, o Sopro de Vida. Política, portanto, é a forma concreta de celebrarmos a Shechina.

Nossos tempos provocaram uma compartimentação em nossas vidas e às vezes é difícil ver como as partes se conectam. Vivemos numa sociedade burocratizada, dividimos nossos dias em horários e nossas reuniões em itens de pauta com sua respectiva minutagem. Como, então, podemos restaurar o entendimento da noção de completude, integridade e do sagrado? Parte do tikun (conserto) precisa ser a restauração de nossa própria fragmentação e a recuperação do senso de que necessitamos de todas as partes para criar uma vida judaica completa e sagrada.

A interface entre texto sagrado e ação social é reconhecimento de que as lições do texto nos levam diretamente às ruas, para tornar estas ruas mais justas e menos violentas, como também nos conectar à nossa tradição, que nos exorta a sermos sagrados através da boa ação.

Uma forma de pensarmos sobre ação social em termos religiosos é sugerida pelo rabino Jonathan OmerMan. Ele nos ensina que a maior parte do trabalho que fazemos sob a rubrica de ação social pode ser classificada como sacerdotal ou profético. O sacerdotal abrange as atividades de cura e doação, enquanto o profético requer uma atitude de "investigador de Israel".

Pela minha experiência, é muito mais fácil envolver as pessoas religiosas em questões sacerdotais, aquelas ações que têm como objetivo ajudar outros a escapar (ao menos temporariamente) em relação ao estado de carência no qual se encontram. Aqui, refiro-me especificamente a alimentar famintos, abrigar os sem-teto, cuidar dos doentes. Estas atividades se encaixam na melhor tradição de guemilut chassidim e trazem em si o benefício extra de serem pessoalmente compensadoras. A comunidade judaica mostra vários exemplos deste tipo de trabalho: a doação constante, pela CJB, de latas de leite em pó para um orfanato; o oferecimento pelo Conselho da Mulher Judia, de dez cestas básicas para famílias de doentes de AIDS, por ocasião da Campanha de Natal sem Fome (além do engajamento pessoal de centenas de judeus nos Comitês da Ação pela Cidadania e contra a Fome); o apoio do Grupo Bat Kol de Rosh Chodesh da CJB ao trabalho educativo de crianças de rua.

Estas ações são necessárias, mas não suficientes. E é aqui que entra a responsabilidade profética, mais difícil por ser mais arriscada e notoriamente impopular. Estas ações pretendem expor tanto a ferida quanto aquilo que fere.

A maior parte das questões apresentam tanto a possibilidade quanto a necessidade de ambos os tipos de ativismo. É preciso fazer as pessoas reconhecerem, por exemplo, que todo o abrigo do mundo não vai compensar a falta de moradia, o que leva a uma intervenção do estilo profético, como a exigência junto aos poderes públicos da construção de casas populares e da abertura de linhas de financiamento compatíveis com os vencimentos das famílias.

Uma ativista social da Califórnia, Evely Laser Shlensky, propõe a recriação de uma tradicional metáfora religiosa para dar sentido ao trabalho de justiça social: a escada de tsedaká. Sua escada, no entanto, seria menos como a hierárquica escada proposta por Maimônides e mais como a escada do sonho de Jacó, um veículo interativo, com muita troca, conectando valores divinos com necessidades terrenas, sendo que todos os degraus seriam de grande mérito. Apresento alguns degraus desta escada:

Justiça da qual nós mesmos obteríamos benefícios, como o pagamento da Licença-Maternidade ou a reforma do sistema de saúde;

Justiça para pessoas as quais podemos nunca chegar a conhecer, como a luta contra o fundamentalismo ou a busca da paz na Bósnia;

Justiça que pode Ter conseqüências custosas para nós, como a reforma nos impostos ou o aumento de benefícios para os empregados da sinagoga;

Justiça pela qual podemos trabalhar diretamente, como a luta por uma distribuição mais eqüitativa de terras ou contra a poluição de nossa cidade;

Justiça que esperamos que resulte da eleição de representantes públicos justos, políticos, juízes e outros;

Justiça para aqueles que percebemos como nossos inimigos;

Justiça visando o envolvimento de mais pessoas para a causa;

Justiça que busque melhorar a qualidade de vida de todos.

A tradição judaica deve encontrar expressão tanto por nossas aos individuais quanto por nossas ações coletivas. Uma característica preciosa do trabalho de justiça social é o de que, quer experimentemos uma elevação espiritual através dele ou não, se executamos a tarefa com devoção ao menos deixamos algo feito no mundo. Minha esperança é a de que encontremos formas criativas de fazer com que a ação social permeie a vida na sinagoga. Gostaria que todos entendessem que as sinagogas são lugares onde os judeus e judias se reúnem para rezar, para estudar e para formular planos visando espalhar pelo mundo valores básicos do judaísmo: justiça, compaixão e paz. Assim, o trabalho de restauração dos fragmentos estará encaminhado e a sinagoga será um espaço ainda mais completo e sagrado.

Celia Szterenfeld é psicoterapeuta, fundadora do Grupo Bat Kol e Coordenadora do PIM – Programa Integrado de Marginalidade do ISER – Instituto de Estudos da Religião.



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