A CONDIÇÃO DE EXILADO

Carmen Felicitas Lent


 

 

"De qualquer forma que se apresente
e seja qual for a sua causa, o exílio nos
seus começos é sempre uma escola
de vertigem. E a vertigem não é coisa
que qualquer um tem a sorte de
alcançar. A vertigem é uma situação-
limite e algo assim como o extremo do
estado poético."
E. M. Cioran
A tentação de existir.
I
O exílio é uma escola de vertigem. E bem vertiginoso o próprio pensamento sobre o exílio. Uma vertigem à qual nos precipita o limite.
Considerar o exílio é sempre pensar uma certa dor. Uma dor conhecida por cada um de nós.
O exílio é herdeiro de uma facada, aquela que nos retirou inapelavelmente do chão.
Se, na ponta visível do iceberg aqueles que chamamos exilados foram sempre minorias - uns poucos indivíduos ao longo da história, uns poucos povos ao largo da geografia -, na escondida imensidade subjacente todas as criaturas são exiladas.
Universalmente.
Do ventre materno ao leito do ancião, cada instante vivido implica ser expulso de um território de tempo, de um território de espaço.
De fato, para sermos exilados sofremos três feridas radicais: o exílio é imposto, é inevitável, é irreversível. Conseqüentemente aos abates o ser que éramos deixou de existir.
Ser homem é ser exilado.
Assim nos fala o próprio mito da criação. O paraíso é para ser perdido.
Tentemos fazer do paraíso a pátria. Isso nos tornará expatriados.
Se perder o paraíso nos traz dor, também nos traz sentido. Só quando o paraíso nos é arrancado, nasce o sentido. Do éden ao útero, cada aconchego que perdemos nos fez, nos vai fazendo. E com cada sentido vamos ganhando um tanto de medo.
A própria vida é o último paraíso que conhecemos.
Se perder o paraíso nos traz dor, tentaremos não perdê-lo. Este é o grande sofrimento: não conseguir navegar na correnteza, unhar a pedra enquanto o fluxo nos convida a ser levados. Machucar-nos procurando aderir a cada tronco, a cada penhasco, que também são arrastados.
A diferença do sofrimento, a dor e o medo nos fazem viver. Junto com eles, herdamos a alegria do sentido. O sentido, como o exílio não tem volta. É nossa sina e é também o nosso caminho mais difícil, que só se faz andando.
É vertiginoso perder o encaixe perfeito - e ilusório - do paraíso. Vertigem de roda - teto, roda - chão. Cadê a bússola, cadê ?
No trânsito entre o desterro e o sentido habitamos a vertigem. Antes , estávamos tacitamente encaixados, conhecendo cada canto dessa terra, conhecendo-nos em cada canto, chamando cada canto pelo nome, respondendo ao chamado de nosso nome em qualquer canto.
Se perdemos o canto, como cantar? Se perdemos a terra , a quem chamar pelo nome? Em que língua? Na terra da vertigem só é viável a poesia. Aquela que inventa, recria, que nasceu exilada e nunca mudou.
II
deixa eu rolar onde não tem idioma
descobrir o país do silêncio
catá-lo no mapa com muito cuidado
morar no sem - som até dizer chega
sumir afundar apagar no sem - ser
voltar com asas
no vôo transparente do amanhã.
Rio 1975
Na ponta visível do iceberg, há exilados e migrantes. A diferença é grande, apesar de ambos saírem geograficamente das suas terras.
Sair do território é escapulir do tácito, romper com o consenso e entrar no anonimato.
Exilados e migrantes deixaram para trás um território do qual eram habitantes, não apenas moradores. Para ser habitante de um território é preciso ter com ele uma relação semiótica. Permitir que ele nos faça seu cidadão. Um cidadão tem um vínculo com a mãe terra, aquela que tem temperaturas, cheiros, sabores, firmamentos e estações . Uma determinada hora para anoitecer no inverno e outra no verão. Uma mãe terra proporciona a textura da pele e as frutas da época. Uma mãe terra é onipresente. Uma mãe terra como toda mãe, é um paraíso.
Um cidadão tem um vínculo com a mãe terra e um vínculo com o pai país.
Com o pai país o cidadão dialoga, critica, participa, vota, se abstém. Do pai país , a mãe terra recebe um nome e o cidadão também. Do pai país ele recebe os sons, ele chama as coisas deste jeito que não é aquele de lá.
A terra e o país, juntos, fazem um território. Território: família e casa. Território: comidas da infância e campanhas eleitorais, chuvas de verão e vernissages. Território: mundo de regras e ingredientes que se receitam numa feijoada. Território: mãe e pai, ingredientes e regras que fazem dos seus moradores habitantes - cidadãos.
Deste território, migrantes e exilados, habitantes - cidadãos, saem . Um dia, na ponta visível do iceberg, podem encontrar-se em algum lugar do planeta e ambos terão para partilhar aquelas saudades, aquelas lembranças. Até mesmo se forem de procedências diferentes, podem partilhar o fato de lembrar, de trazer para a mesa um lugar fantasma, que só existe na memória de cada um. Partilham a estrangeiridade, podem até partilhar algumas tristezas. Mas o sofrimento não é dos dois.
Migrar é como crescer, virar gente grande e um dia decidir que é hora de sair da casa dos pais e ter seu canto próprio . Trouxinha no ombro, mais longe ou mais perto, nos instalamos no novo bairro com a excitação da novidade e a tranqüilidade de almoçar com os velhos à hora que quiser. A mudança é enorme e vem cheia de temores e dúvidas e vontades de voltar para trás e sentar de novo na carteira e esquecer toda essa estória de ir à luta etc., etc., etc. E também a mudança vem cheia de euforia pela realização e pelo movimento e pelos projetos.
Migrar é ter despedidas. E possíveis reencontros. Porta giratória que nos faz pertencer a dois espaços: o de cá e o de lá.
Ser exilados não é como crescer, é como ser tirado verde do galho. É ficar órfão de pai. Mãe viúva casa de novo. O pai vira padrasto. De conto de bruxas. Padrasto que manda embora. Na força, na marra. Não há mãe, silenciosa mãe, que segure. Às vezes alguns irmãos tentam sem sorte. O cidadão é desterrado.
Dizemos: migrar é ter despedidas. Não existe o "exilar" do cidadão. Ele é exilado, os verbos mudam de conjugação.
Quem migra é um migrante. Inaugura um gerúndio que é liberdade, movimento.
Quem é exilado inaugura uma orfandade presa ao ressentimento e à nostalgia. Não possui nenhuma passagem pela porta giratória e fica, em princípio, determinado à estadia no lado de lá que é puro sofrimento. Escola de vertigem.
III
testigo:
cuando no estás
no hay aire para dar el grito
huracanes de ahogo
rellenan los minutos
instalando
el exilio del sentido
Migrantes e exilados, no começo, não habitam nem cá nem lá. Meros moradores, desconhecem regras e ingredientes. Feijoada, nem pensar. Residindo na Terra de Ninguém, ambos são ninguém.
O migrante, porém, mantém sua raiz intacta, ainda que distante. No sonho e na realidade, conserva seu nome, está apenas ao lado da sua origem. Há uma referência constante, testemunha que desde este lado da porta presencia as venturas e desventuras do lado de lá. O ser ninguém do migrante é só unilateral.
O exilado carece de raiz. Não teve despedidas, teve expulsão. E a expulsão alienou seu direito à testemunha. Não pode olhar nem ser olhado. Na Terra de Ninguém, ele é ninguém lá...e cá.
O migrante tornou-se planta aérea. O exilado teve que fazer uma mutação, virar ave e voar.
IV
e onde o não - retorno
onde a casa do exílio perpétuo
onde a paragem sem bandeiras
nem cortejo
onde o lar do último moicano
solidão deveras partilhada
ilusão final que se desfaz
onde o solo tem sabor e
lembrança
onde é de todos que tanto é de
ninguém
onde estará o mínimo consolo
dia de almoço
abraço que abrace
raiz e raiz e raiz
uma noite que a música toque
os amigos se apresentem
e o medo deixe de insistir
Ser homem é ser exilado. Tentamos fazer do paraíso a pátria. Isso nos tornará expatriados, do ventre materno até além do leito do ancião.
No trânsito entre um e outro, sermos criaturas para a morte nos faz desejar ser migrantes. Ir, voltar, passar por cada mudança provisoriamente , sem ter que mutar.
Quem escolheu partir pode, um dia, optar pela nova terra, que já será um novo território. Novo cidadão, visita quando deseja a casa dos pais. Renunciou finalmente à tentativa de pertencer aos dois lugares ao mesmo tempo.
Apesar do seu sofrimento, também é dado ao exilado poder um dia abandonar a Terra de Ninguém. Afinal, "a vertigem não é coisa que qualquer um tem a sorte de alcançar".
E, na escola da vertigem, a vertigem se transforma em escola e ensina. Situação - limite que ela é, vai escrevendo a poesia> Que redimensiona a aleatoriedade humana e os execráveis abusos do poder. E que oferece ao exilado a possibilidade de transcender o cidadão.
Transcendendo o cidadão, o exilado vira homem: exílio constante, perpétuo. Amém.

Carmen Felicitas Lent, argentina
residente no Brasil desde 1969.
Psicoterapeuta formada pela
Universidade de Buenos Aires e
Berkeley (Califórnia), especializada
na teoria e na clínica de situações de
crise. Pesquisou especialmente o
fenômeno da migração como uma
das modalidades de crise no ser humano.

 

 
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