BAT MITZVA
Rabino Nilton Bonder


 

 

Em Outubro de 2000, em Simcha Tora, a Congregação Judaica do Brasil, no Rio de Janeiro, realizou um Bat-Mitzva coletivo de 60 mulheres, comemorando dez anos de ativismo na tentativa de resgatar um papel mais ativo para a mulher na sinagoga. O Jornal O Globo realizou uma entrevista com o Rabino Nilton Bonder que é agora transcrita em sua íntegra.

O que significa Bat Mitzvá e o que isso representa para as mulheres judias?

O Bat-Mitzvah (literalmente, filha, ou compromissada com a tradição) foi a primeira tentativa de trazer a mulher de volta para a sinagoga. A idéia, nascida nos anos 20, buscava oferecer à mulher uma "iniciação" religiosa semelhante a dos meninos (o bar-mitzvah). A importância que a tradição dava aos homens, através da iniciação pela circuncisão do recém nascido e pelo Bar-Mitzvah, demonstrava o desequilíbrio no tratamento com a mulher. É verdade que parte desta desigualdade ocorreu do período medieval para cá quando o puritanismo e o moralismo europeu permeou para dentro do judaísmo. No entanto esta atitude é bastante antiga e talvez nos fale sobre arcaicas formas de relação entre homens e mulheres que perduram até os nossos dias.

Você recebeu muitas críticas quando acabou com a discriminação em relação às mulheres na sua sinagoga. O que te levou a bancar um ato tão corajoso?

Muitas. Mais talvez do que imaginava. A questão é bastante delicada e eu a respeito. Não se trata apenas de uma questão de pessoas mais esclarecidas versos pessoas reacionárias.

Homens e mulheres criaram um modo de relacionamento nos últimos quatro ou cinco mil anos que representava, até pouco tempo, a melhor maneira de manter a harmonia numa sociedade sedentária e urbana. Isso está mudando, mas leva tempo. A estrutura de dominação e privilégio do homem foi construída por conta de sua fragilidade. Se D'us não se parecer com um homem então o que nos sobra? As mulheres são as verdadeiras matrizes de nossa espécie. Elas dão a luz, elas influenciam os filhos mais que os homens, vivem mais e suportam a dor melhor. Ao homem resta a força física e outros atributos que espero os homens do futuro venham a descobrir ou se conscientizar. Mas o homem é o número dois. Pergunte a um homem quem é seu número um. A cultura quer fazer crer que é o "papai", mas a emoção e o afeto sabem que é a "mamãe".

Para se proteger o homem gerou espaços seguros e de refúgio onde "mulher não entra". Com isso não só se protegia como vivia uma espiritualidade que ressaltava certos aspectos masculinos que são, em si, importantes. Mas é esta atitude de "clube do bolinha"que não encontra espaço em nossos dias. Os homens vão ter que enfrentar estes desafios sem fazer uso de proibições e tabus que a cultura inventou. É porque a mesma cultura esta inventando outra forma de relações entre os sexos. Mas é daí, de uma transformação que ainda não ocorreu, tanta crítica e até mesmo um sentimento de traição. Mas não é só dos homens. As vezes é mais violento vindo das mulheres. Muito desta antiga forma de ser da cultura está enquistada na própria mulher. Há mulher que fala um discurso de igualdade, mas que, em casa ou na relação com o homem, é ainda parte desta cultura tanto quanto o machão.

Como você conseguiu vencer essa barreira num contexto machista e tão cristalizado ?

Consigo porque não sou eu contra padrões de comportamento. Senão seria um pouco demais de areia para o meu "caminhãozinho". Trata-se de uma mudança real e que conta não só com o apoio de uma parcela da sociedade, como uma parcela de cada um de nós. Nos centros de cultura de nosso tempo isso se processa de forma mais elaborada e até institucionalizada. Mulher vota, mulher pilota avião e mulher é rabino. Não estou inventando mas trazendo esta questão para nossa realidade brasileira e que tem, sem dúvida, as suas peculiaridades. Minha coragem, por assim dizer, vem do meu apreço por uma tradição tão rica e construtiva que gostaria de ver sobreviver para as gerações por vir. Ela só chegou a mim para que pudesse usufruí-la porque souberam no passado acatar mudanças, principalmente aquelas que diziam respeito aos costumes e comportamentos. Quem muda hoje é quem realmente produz a tradição de amanhã. Não tenho respostas, mas estou disposto a explora-las sabendo de seus custos e dificuldades.

Como o seu "feminismo" é visto por setores tradicionalistas da religião?

É visto de forma muito negativa. É considerado o "começo do fim" ou algo contendo um poder destrutivo muito grande. Onde há fumaça há fogo; onde há medo há questões vivas. E onde há questões vivas é onde a vida se processa. Reconheço que é por demais ameaçador para estes círculos ortodoxos e, de certa forma, para todos. Há os que querem me tornar ilegítimo, não representativo ou demonizado. Não é isto que fazemos na maioria das vezes que nos sentimos ameaçados? Sei, no entanto, que em meio a este medo, há respeito e, em alguns casos, até uma admiração dissimulada. Afinal, o futuro não passa ao largo da vida. O judaísmo ou qualquer tradição ou cultura não pode substituir a vida, tem que ser um mecanismo que nos auxilia a lidar com ela. Por vezes tem até a função de colocar "véus" ou atenuar processos da vida. Mas não acho que em nossos tempos os "véus" do passado estão servindo. O véu pressupõe proteção, um certo ocultamento, mas não pode cegar. Quando o véu não é mais permeável então a gente bate com a cabeça na parede e não enxerga mais a nossa volta.

O que rabinos ortodoxos acham desse movimento feminino na sinagoga?

O discurso dos rabinos ortodoxos é de negar qualquer situação de privilégio dos homens. Sua fala diz que a mulher é a figura principal na família e que lhe é reservado a mais sagrada das tarefas -- o cuidar da casa e da educação dos filhos. Há algo mais sagrado? Dizem que a mulher detém o poder, mas são eles que lhes determinam as regras. Há aspectos de sua fala que são muito bem aceitos num mundo de transformação e insegurança. No entanto não há dúvida de que este discurso é mais político do que teológico. Toda a vez que alguém for apontado como detentor de poder e importância quando não toma as decisões, fica caracterizado um jogo de manipulação ou de conteúdo político que expressa interesses ocultos.

Por que as mulheres foram mantidas tanto tempo longe?

A jurisprudência neste caso aponta a mulher como um foco de distração para o homem. A concentração espiritual só seria possível se o homem não fosse tentado por pensamentos maldosos na presença da mulher. Aceitar este tipo de postura é uma ofensa para mim como homem. Esta distração me parece bastante mais presente nas sinagogas que escondem a mulher por trás de treliças do que em sinagogas como a nossa, onde homens e mulheres sentam juntos e a mulher participa em igualdade com o homem. Há, no entanto, questões que considero importantes. A espiritualidade pode ser intensificada às vezes tendo-se uma homogeneidade entre os participantes de um ritual. Um grupo só de mulheres, ou um grupo só de homens pode criar ambientes bastante propícios para rituais. Criar estes espaços é um desafio de nosso tempo. Mas não acredito que isto seja possível pela proibição ou de justificativas que postergam os desafios de hoje.

Como as mulheres devem se vestir para ir à sinagoga: a ostentação é perigosa ou é inócua?

No que diz respeito a objetos religiosos, tal como a manta que os homens utilizam durante as orações ou o solidéu, por exemplo, acho que a mulher terá que desenvolver seu próprio "estilo". Os homens tiveram séculos senão milênios para realizar isto. O solidéu é uma invenção da Idade Média. Antigamente os homens cobriam a cabeça com turbantes ou com mantos que faziam parte de sua indumentária. Há uma trajetória a ser cumprida pelas mulheres. Há pessoas que se chocam porque os modelos de hoje foram por séculos identificados com homens. Quanto à roupa propriamente dita se eu for entrar nestes meandros tenho que me perguntar, por exemplo, com que carro chegam os homens?

Ostentação não me parece um problema da mulher ou do homem. Parece-me mais um problema de pessoas profundas e espiritualizadas e pessoas superficiais e não espiritualizadas.

Neste sentido ortodoxo ou liberal não é garantia de nada. Em nossa sinagoga essa nunca foi uma questão sentida particularmente na mulher.

Somos educados aprendendo a respeitar "um" D'us "homem", nesse caso qual o espaço da mulher dentro do "sagrado", das religiões ?

A pergunta diz tudo: "somos educados". Uma amiga minha que é rabina nos Estados Unidos já há alguns anos me contou que certa vez teve que se ausentar de sua congregação por motivos de viagem. Pediu então a um colega rabino que a substituísse em sua sinagoga. Na primeira cerimônia que este realizou, uma menina voltou-se para sua mãe e muito surpresa comentou: "Mãe olha... o rabino é homem!". É tudo uma questão de costume. Quando o homem tinha muitas mulheres, e isto já foi válido para as leis judaicas (vide a Bíblia), a santidade da família não parecia abalada porque um dia o papai dormia com a mamãe e no outro com a mamãe dele ou dela. Alguém vai um dia olhar quadros renascentistas e comentar: "mãe olha.... Deus é apresentado como um homem!". Espero que isto não seja num contexto onde Deus tenha que ser mulher, mas que venhamos a aprender o sentido milenar de não fazermos imagens. Deus homem, mulher, gay, velho, novo, ou qualquer outra forma que assuma será sempre um Deus político, indo de encontro a interesses específicos de algum grupo. Se Deus é a essência, um Deus homem é em si idolatria.

E como você vê a discriminação em relação às mulheres nas outras religiões ?

As tradições ocidentais todas estão vivendo este mesmo processo. Na tradição católica pareceria diferente, afinal temos a figura das freiras. No entanto, a estrutura é masculina.

Quem decide sobre aborto são homens, a hierarquia é masculina. O Messias é homem e o filho de Deus é homem. Não foi filha porque filha não salva. Gosto de uma idéia radical aventada por um mestre Hassídico de que o Messias virá não como um homem mas como um casal. Afinal o primeiro ser humano foi um casal. Bem ocultado pela hierarquia de uma "vértebra", mas o texto não deixa de nos contar que aquela foi uma história conjunta e não separada. Adão e Eva é que criaram seu destino como uma dupla.

Acho que há aqui e ali algumas tradições que são um pouco melhor ou pior. A verdade é que esta se processando uma transformação planetária. Como cada uma destas tradições absorverá estas mudanças é uma incógnita. Vivas no próximo milênio, no entanto, só estarão as que souberem permear as transformações e se fazer trincheira para se lidar com elas.

Como você que se tornou uma espécie de guru das mulheres ?

Não sei se posso ser caracterizado assim. Se o sou é pelo que acabo de dizer e por estar fazendo no Brasil o que está acontecendo pelo mundo a fora. Mas há algo importante para ser dito. Minha missão de vida não é essa. Caso fosse haveria algo de errado em um homem estar liderando um processo das mulheres. Vejo meu trabalho como uma ponte entre o presente e um passado muito rico onde enfrentar os desafios foi a chave para a sobrevivência.

Acredito que o judaísmo tem uma função importante nos quebra-cabeças das tradições religiosas e de nossa cultura e muito para contribuir para um mundo de mais aceitação e menos violência. A questão das mulheres é parte deste trabalho. Não vejo a hora de poder sair desta "caracterização" para assumir junto com os meus companheiros homens nossas questões que não são poucas. E as mulheres que se preparem pois as reivindicações serão tão barra pesada quanto parecem ser para o homem a mulher na sinagoga.

 

 
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